Não sei se o amigo leitor se lembra do Nicola – ou melhor, do Dr. Nicola – que vez ou outra apareceu por aqui, neste espaço, a comentar suas venturas e desventuras como motorista de táxi e, pasmem, doutorando em Psicologia com a tese Mulheres Que Amam Demais (nem sei se terminou ou se continuam as pesquisas).
Pois bem, lá em uma de nossas conversas em tempos idos e vividos, o amigo Nicola me confessou que tinha soluções objetivas para situações embaraçosas que as duas profissões poderiam lhe acarretar.
No táxi, quando lhe pediam antecipadamente o preço da corrida, ele era enfático: o que der no taxímetro; o dobro disso se era em outro município. O justo e o combinado.
Nas sessões, a questão não era pecuniária. Muitas vezes o consulente se enroscava em meio às suas histórias de vida e não conseguia por um ponto final à narrativa que achava vital e que, por ser vital, não tinha fim.
Na primeira brecha que se apresentava, o Doutor sugeria então que o “analisado” se dedicasse às reflexões a partir da intensidade dos momentos em que as verdades foram ditas (ou silenciadas) olhos nos olhos com eventuais interlocutores, supostos causadores de perdas e danos.
Quase sempre usava esse expediente para terminar consultas em que se discutiam romances desfeitos, amores impossíveis, paixões proibidas e congêneres.
Nicola me disse que recomendava inclusive a audição de duas canções: a jobiniana “Este Seu Olhar” e “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque. Ambas tratam do mesmo tema, mas o tom de dramaticidade é bem outro.
(Os versos estão no Youtube, me poupem…)
E aí? – perguntei, enxerido que sou. — Resolvia alguma coisa?
— Se resolvia, resolvia, não sei. Mas, fazia os caras pensar pra caramba. Para quem está querendo dar novo rumo à sua vida, se reconstruir, convenhamos, isso é um primeiro e definitivo passo.
II.
Gosto do jeito simples e direto que o amigo Nicola tem para esclarecer esses impasses existenciais. Desconfio que, mais do que os livros e a ciência que estuda e desenvolve, ele se espelha nas experiências de vida que recolhe ora na penumbra do consultório (há quem diga que é à meia-luz que as pessoas se revelam) ora nas idas-e-vindas com seu táxi pelas ruas de Sampa.
Não lembro como terminou nossa conversa naquele dia. Sei que, na esteira do papo, me pus a pensar no assunto – e, pra variar, não cheguei a conclusão alguma.
Olhar nos olhos de alguém pode ser um gesto nobre, definitivo; mas pode também ser uma intimidação, tipo: sabe com quem você está falando?
Os mais antiguinhos como eu devem bem se recordar de que bastava o severo olhar do pai para nos colocar em nosso devido lugar de filhos obedientes.
Enfim… Eram outros tempos.
Até porque, se me permitem, as grandes verdades, as grandes declarações, quando a fazemos, reparem bem, estamos olhando para dentro de nós mesmos, da nossa alma, dos nossos sentimentos.
Já ouvi grandes mentiras que me foram ditas assim, na bucha, como se fossem a mais absoluta das certezas.
Também já trombei com meias-verdades e, réu confesso, retribui na boa e cara-a-cara.
Particularmente, me encanta – e não saberia definir a intensidade – aquele exato momento quando os olhares se cruzam, assim meio que distraída e inesperadamente, sem nada querer dizer e já tudo dizendo. Não com palavras, mas com sonhos, devaneios ousadias.
É exatamente aí, creio, e com a vênia do amigo Nicola e de seus pares, que a vida recomeça.
O inverso – lamento informar – também é real. Quando os olhares se encontram e não se vê mais ali, o brilho que um dia houve.
Sabe-se então que é o fim.
O fim que, por mais doído que seja, incide obrigatoriamente em um novo começo.
É da vida e dos amores.
Como diria o grande Roberto, se chorei ou se sofri…
(Queiramos ou não, gostemos ou não das canções de Roberto/Erasmo, cada um de nós sabe bem como completar a frase.)