Os desafios dos jornais de bairro
Em recente seminário a Cátedra da Unesco tratou das manifestações populares que, de um modo ou de outro, acabaram cooptadas por essa entidade sinistra e enigmática chamada Sistema (durante os anos 70 era a responsável por todos os males da humanidade) e hoje atende pelo nome de Mercado, aquele que estabelece regras implacáveis e que só consagra os vitoriosos.
Mas, a proposta do artigo é fazer algumas considerações sobre jornais de bairro que entendo ser também uma manifestação popular e, agora, enfrenta sérios desafios para continuidade de propostas.
Valho-me da oportunidade, aliás, para divulgar que até 17 de dezembro o Senac da Lapa está promovendo uma exposição que trata deste tema: “Jornal de Bairro. A Outra Grande Imprensa”. Os organizadores referendam a escolha do assunto com um dado irrefutável: semanalmente mais de 2 milhões de exemplares de jornais de bairro são distribuidos gratuitamente nos quatro cantos da Capital, inclusive em alguns municípios do Estado. Uma tiragem que supera nossa revista de informação de maior destaque (Veja) e o principal jornal do País (Folha de S.Paulo) que, aos domingos, sai com pouco mais de 1 milhão de exemplares.
Na abertura da mostra, houve um painel para reflexão sobre a importância dos jornais de bairro como veículos de informação e transformação social. Na platéia, aproximadamente 120 representantes de 70 jornais de bairro da Grande São Paulo. Coube-me a tarefa de falar no quarto bloco sobre o futuro e os desafios da imprensa setorial no próximo milênio.
Faço aqui duas observações. 1) entendo o título pomposo demais para minhas modestas observações; 2) trabalho há 25 anos na Gazeta do Ipiranga (jornal semanal com tiragem de 60 mil exemplares) e, ao longo desse período, pude acompanhar as mudanças que o veículo vem passando – e que, de resto, causa-me muitas preocupações.
A principal questão que levantei em plenário foi a descaracterização editorial e gráfica dos jornais de bairro. Nos anos 60/70 éramos os porta-vozes das legítimas reivindicações populares. Estávamos acima das ideologias e dos partidos políticos e, pasmem!, do interesse do anunciante. Levávamos às autoridades as reivindicações dos moradores da periferia que não tinham condições básicas de vida: luz, calçamento, asfalto, esgoto, água, escola para os filhos. Estávamos a serviço de uma população que não tinha a quem recorrer. Os grandes jornais não davam espaço para esse tipo de noticia e as autoridades estavam hermeticamente distante dos lamentos populares (vale lembrar que vivíamos num período ditatorial)
Já no final dos anos 70 e começo dos 80, a distensão democrática ganhou espaço em Gazeta do Ipiranga e em muitos outros veículos que incentivaram a criação de clubes de serviço, associações de bairro, entidades representativas de grupos sociais, centros desportivos e culturais. Dessa forma, a organização social ganhou núcleos bem definidos (uma vez que os partidos políticos e os sindicatos existiam só para “legitimar” a imagem de democracia) e o gosto pela cidadania. Quando eclodiu o movimento pelas diretas-já, em 84, a sociedade já possuía canais aglutinadores que reverberavam a necessidade da mudança.
Os anos 80 e o início dos 90 registraram um grande avanço dos jornais de bairro enquanto veículo publicitário. Os bairros ganharam vida própria, com comércio atuante e cadeia de empresas prestadora de serviços de porte considerável. E gradativamente passaram a priorizar o comercial ao editorial.
Com algumas de suas bandeiras praticamente resolvidas (o jornal de bairro deixou de falar do buraco da rua, que continua a existir mas não é mais tão notícia e a democratização é um fato consumado) e insuflados pelos bons ventos do Real que aquecem a Economia (Gazeta do Ipiranga chegou a tirar edições de 48 páginas, com 70 por cento do espaço dedicado aos anunciantes), os jornais de bairro passam a ser prestadores de serviço e um brilhante vendedor, especialmente para anúncios varejistas. Criam-se seções absolutamente dispensáveis como Informática, Turismo, Carro Feminina, Guia dos Consumidor, entre outras – sempre priorizando que pode e quer anunciar. A própria primeira página começa a abrigar mensagens comerciais e chamadas para os melhores anunciantes – e o editorial perdendo terreno.
Até porque esse processo de descaracterização também chega às entidades que, salvo raríssimas exceções, passam a ter propostas político-partidárias a reger seus destinos Quando não é o próprio presidente ou diretor da SAB que é candidato a vereador, ele está trabalhando, com salário e tudo mais, para um político profissional.
As grandes questões, que mexem com a opinião pública, fogem da alçada meramente regional. É a causa ambientalista, o recrudescimento da violência, a corrupção desenfreada, o trabalho das ONGs – e isso também é tema de outros jornais que o explora à exaustão. Também não interessa à comunidade como um todo, só a alguns segmentos. Mas, mesmo assim, sem qualquer comoção maior.
Co m o refluxo da Economia, especialmente depois da desvalorização do Real, a imprensa setorial vê atingido justamente o maior potencial de anunciantes: a pequena e média empresa. Sem fôlego para anunciar como faziam anteriormente, sobrevivem às duras penas; quando não fecham as portas, não conseguem pagar o preço de tabela ou tornam-se inadimplentes.
Eis a encruzilhada: o jornal de bairro não pode perder a estrutura profissional que adotou, mas está sem um projeto editorial qualificado (e identificado com os leitores, que só o procuram agora como prestador de serviços) e a crise esfacela o reduto de anunciantes.
(De quebra, perde-se muito do sentido comunitário que davam vida a muitos bairros da Capital. Agora, as compras são feitas nos shoppings e ninguém se importa em cortar a cidade – ou mesmo, sair dela – para se divertir).
Como enfrentar o impasse? Com criatividade, sim. Mas, principalmente com uma nova estrutura empresarial que busque a profissionalização e, principalmente, os ditames organizacionais imprescindíveis a uma empresa de comunicação na virada do milênio.
Está lançado o desafio…
* Texto para apresentação em debate sobre jornalismo regional na UMESP