Aquele boteco onde o Sacomã torce o rabo, no cruzamento da rua Bom Pastor com a rua Greenfeld, em frente a agência dos Correios, era nosso ponto de encontro.
Acontecesse o que acontecesse. Sol ou chuva, alegria ou tristeza. Passávamos lá todos os dias para bater o ponto e principalmente ouvir o guru Nasci filosofar, a bordo do seu indefectível cachimbo, enquanto os ônibus Fábrica-Pinheiros abriam o bico na curva para não atropelar incautos e mulambentos.
Toda uma marginália tosca e inofensiva vivia por ali a dar cor, histórias e folclore ao lugar e a nós, discípulos fiéis e amigos do mais famoso de seus convivas. Claro que estou falando do Nasci.
II.
Foi numa das noites que o tempo transformou em memória. O Mestre me chamou:
— Ouça a conversa dos ‘malucos’ e aprenda com a vida.
Àquela hora, o Nasci costumava estar sóbrio e brincalhão. Não entendi a insinuação. Poderia estar preparando alguma. Não parecia haver nada de errado com Rubão e Palito, os malucos que conversavam ao redor de algumas garrafas vazias de cerveja. Conversavam animadamente, diga-se.
— Nasci, é natural que estejamos os três felizes. Foi uma vitória e tanto. Vamos ter história para contar por semanas.
Eu, Rubão e Palito acabávamos de chegar do futebol. O escrete do qual fazíamos parte eu e o Rubão, o Sucatão do Clube Atlético Ypiranga, vencera com folga um arquirival do pedaço, o União Mútua da Vila Capocha, por 3×2. Faltaram alguns boleiros e o Palito fez uma participação especial. E deu conta do recado…
— Bola para o mato que o jogo é de campeonato — bradava a cada desarme que fazia e logo após isolar a bola com um chutaço.
O jogo não valeu taça, mas confirmou as invictas do time do Bigucci, dos irmãos Adílson e Aírton, do Labate, do velho Kim e de outros caros amigos. Depois dos noventa, a confraternização costumeira. Alguns foram comemorar a vitória na Pizzaria do Gino na Silva Bueno. Eu, Rubão e o convidado Palito preferimos nos apresentar ao Nasci que, gozador como de costume, duvidava da nosso talento futebolístico.
— Que o quê. Ganharam? Só se jogaram contra o time de cegos do Instituto Padre Chico. Acho que nem assim. Contem a verdade.
E tome baforadas de cachimbo narinas a dentro de quem estivesse por perto.
III.
Era de praxe não se discutir com o Nasci. Tinha saídas divertidas e implacáveis. Por isso, preferi esquecer da porfia e ver o que acontecia ali perto. Sem dizer palavra, levei minha latinha de Coca Light para a mesa dos dois e me acomodei sem cerimônia.
— E aí, gente, qual é o papo?
— Então, cara, estava dizendo ao Palito que ele é que sabe levar a vida.
— Eu discordo do Rubão. Ele é que é um cara de sorte.
Entre uma e outra fala, contei rapidamente meia-dúzia de garrafas de cerveja vazias sobre o tampo. Não sou bom de cálculo. Mas, o Palito era mais rápido no vira-virou, e estava com meio-copo a esquentar de vantagem. O Rubão já havia esvaziado o dele. No entanto, era o que mais falava. Um pelo ou outro, noves fora, beberam quase três cervejas cada um. Não daria para derrubar os valentes, mas traria alguns prejuízos ao raciocínio.
IV.
Desbaratinei:
— Sobre o que vocês estão falando…
— A vidona do Palito. Está solto na praça. Os negócios vão bem. É o rei do baile da saudade, com esse bigodinho a la Clark Gable.
— Bobagem, Rubão. Você está com a vida arrumada. É bem casado, tem emprego com carteira assinada. Trabalha das 8 às 18 e depois só no bem-bom…
— Bem-bom a aguentar patrão, chefe, chefete. Filho do patrão, sobrinho do chefe, amigo do chefete. Dinheiro contado no fim do mês. Na boa…
— Na boa? Cara, dou um duro do caramba. E o governo fica com a parte do leão. Sem falar que tem funcionário que não é fácil, não. Precisou dele, o cara mata pai, mãe, avô, avó… só para abonar a falta. Nem durmo à noite quando os negócios travam e vem chegando o dia de fechar a folha…
Entendi a observação do Nasci. A vida é maluquinha mesmo. À deriva dos problemas do dia-a-dia e da cerveja, um cobiçava a vida do outro.
V.
Posso ser sincero, o Rubão cobiçava mais
— Adivinha com quem o Palito chegou, domingo de mãos dadas, na piscina do clube? Adivinha?
— Deixa disso Rubão, é só uma amiga…
— Amiga, amiga… Sim, sei. Ele chegou com a Garota do Havaí. Aquela que ganhou o concurso. Algum marmanjo, em sã consciência e senhor dos seus sentidos, pode ser amigo e só amigo daquela gostosura. Uma baita morena, sabe qual?, sabe qual?
Saber, saber, eu sabia, mas disse que não. Não quis pagar-pau de babão para o Palito. Amanhã ou depois, o cara me apresenta a moça como noiva, esposa, sei lá – e aí, a minha cara, como fica?
— E o Rubão chegou com a mulher e os filhos.
Era o Palito a revelar segredos que sequer Freud explicaria. Desconcertou a todos.
— Fiquei na maior inveja. Observei ele e o garoto dele batendo bola no gramado. Maior inveja. Na boa, Rubão. Quer coisa mais emocionante, cara? Faz um tempão que não vejo meu garoto. Nem sei com quem ele brinca de bola nas manhãs de domingo. Nem sei onde anda aquela mulher, a mãe do Palitinho…
VI.
Virgem Mãe. Quebrou a perna da rapaziada. Percebi que o Rubão perdeu a graça e os argumentos. Palito estava com os olhos vermelhos. A Garota do Havaí, tadinha, desapareceu da tela imaginária dos nossos assuntos e, com todo respeito, dos nossos desejos. O silêncio ficou insuportável. Ia pedir outra rodada de cerveja para eles e Coca Light para mim quando ouvi a voz do Nasci, sábio Nasci, mudar de assunto.
— Diga aí Palito, me disseram que você foi o melhor do jogo. Confere? Não teve para ninguém. Diz você, que é do ramo, porque esses dois não entendem nada de futebol…
Outro golaço do velho Nasci.
Aliás, nada entendo ainda hoje – e acho que jamais entenderei – dessa bola dividida que é a arte de viver, amar e ser feliz com o que se tem e é…
VII.
Uma demolição arrasa-quarteirão varreu aquele canto do mundo, onde o Sacomã torce o rabo. O “sujinho” não existe mais. Há nas imediações a portentosa estação do fura-fila. Que futuramente vai integrar-se aos trens do Metrô paulistano. Não sei se todo o progresso paga o preço das histórias que ali vivemos…
[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]