Foto: Santos Futebol Clube/Acervo
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De hoje até domingo, vamos recapitular três breves histórias que escrevi sobre o Rei do Futebol.
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(1) – Tchinim e o Rei do Futebol
Ser criança em fins dos anos 50 não era nada fácil.
O dia inteiro na rua.
Jogar futebol descalço na rua ou no barrancão. Andar de carrinho de rolimãs ladeira abaixo. Empinar pipa sempre com os olhos no céu, escapando das fiações e do laça de outros quadrados. Escalar muros atrás de goiabas verdes. Rodar peão. Bolinha de gude.Campeonato de botão. Bicicletar mundo afora…
Enfim, uma rotina pesada que invariavelmente resultava em escoriações.
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Mesmo em casa, Tchinim não se aquietava.
O garoto queria ser goleiro.
Por isso, para ele, não havia espaço e hora para preparar-se para o futuro promissor que o aguardava.
— Defende Gilmar.
— Espalma Castilho.
— Encaixa Poy.
— Que defesa do pequeno gigante Valdir.
Imaginação a mil. O garoto atirava a bola de borracha contra a parede e saltava para defendê-la adotando o nome dos grandes goleiros da época: Gilmar (do Santos e da seleção brasileira), Castilho (do Fluminense e da seleção brasileira), Poy (do São Paulo) e o guardião do seu amado Palmeiras, Valdir Joaquim de Moraes.
Na sala era onde mais gostava de brincar.
O sofá maior transformava-se o gramado adequado para amparar voos e defesas milagrosas.
Só que, óbvio, na sala havia todas preciosidades da família. Inclusive uma jarra de porcelana que, diziam, fora trazida de Murano, na Itália, pelos avós da mãe.
É bem verdade que, em função do passar do tempo, a aparência da peça não era das melhores. Mas, o valor afetivo e familiar pesava e muito.
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Mais de uma vez, a mãe ameaçou colocá-lo de castigo se não parasse com aquela estripulia.
Ali não era lugar de futebol.
— Olha o vidro da cristaleira!
— Não suja as paredes!
— Cuidado com o vaso da minha avó!
Os avisos da mãe entravam por um ouvido e saiam pelo outro.
Até que um dia o inevitável aconteceu.
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Tchinim exagerou na mão ao jogar a bola na parede, espichou-se todo para fazer o que os locutores antigos chamavam de “ponte”.
Mas, tudo em vão.
A bola passou no meio de seus braços. Estourou o vidro da cristaleira e, implacável, foi desastrosamente derrubar o jarro que se espatifou no chão.
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Só de ouvir o barulho, a mãe largou os afazeres da cozinha e foi ver o tamanho do estrago, já de chinelo em punho.
Ao ver o garoto no chão, desconcertado diante do tamanho estrago, conteve a raiva.
Conferiu se havia acontecido algo com ele.
Viu que estava tudo bem e, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu o garoto, ainda em delírio, lamentar-se:
— Puxa, esse Pelé chuta forte mesmo!
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Desistiu da surra.
Mas, por precaução, tomou a bola pra si e escondeu em cima do velho guarda-comida.
A mãe nunca entendeu de futebol.
Mas, até ela, que era mulher, já ouvira dizer que esse tal de Pelé era o Rei do Futebol.
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* Texto originalmente escrito e publicado em 06/04/2011
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