Foi num dia 5 de junho como hoje é. Lá no mais antigos dos anos. Se não me engano, era uma sexta-feira de outono. Ao contrario de hoje, não fazia frio. Ou fazia? Sei lá. Mas, isso pouco importa.
Importa saber que ele a acompanhou até o ponto de ônibus, depois de uma dura jornada de trabalho – e era só e tudo o que podia fazer naquela noite. Aliás, há um certo tempo andavam próximos. Conversavam muito. Riam de qualquer bobagem – e falavam de seus respectivos pares sem restrição alguma.
— Ontem jantei na casa da minha sogra.
— Eu saí com o Jorge, quer ficar noivo. Fiquei feliz.
— Olha só. Logo, vira uma senhora, depois mamãe.
— Deixa de ser bobo. Trabalhe…
II.
Mal podiam imaginar. Embora na repartição, quem os visse, logo detectava uma certa “eletricidade” no ar.
— Ai, ai, ai. A Fernandinha e o Bruno, sei não. Aí tem…
— Deixa de ser maldoso, Hildebrando. Os dois são compromissados. E você imaginando coisas.
— Compromissados? Em que mundo você vive, Marisa?
— Quer saber? Até que formariam um lindo casal…
Longe disso, os dois continuavam os seus afazeres indiferentes a todos e aos comentários. Até aquele dia, a tal sexta-feira, 5 de junho. Bruno fazia o turno da manhã, até às 16 horas. Fernanda pegava às 12 horas. Até às 20.
III.
O arquiteto desceu para o almoço. Fechou o stúdio, pois todos se anteciparam a ele na corrida ao selv-service. Antes de dar o último giro na chave, olhou o gabinete vazio e pareceu ver a silhueta de Fernanda por entre o mobiliário moderno, porém simples. Brevíssimos segundos que aceleraram o coração do moço. Ele nem se deu conta e seguiu com um leve sorriso de inocência.
Na rua, de cara para o sol, a ficha caiu…
Se ele continuasse a desenvolver aquele projeto por mais alguns minutos, era muito provável que Fernanda chegaria e o encontraria. Estariam a sós. Poderiam rir e conversar à vontade. Longe dos olhares capisciosos do Hildebrando. Não pensou duas vezes. Deu meia volta e logo estava em frente à prancheta. Risca daqui, esquadrinha dali. Um olho na projeto e outro na porta.
Em vão.
IV.
Deu uma hora – e nada da moça aparecer. Os colegas voltaram e estranharam a tristeza de Bruno.
— O que foi, compadre? Não almoçou?
— Quer virar “arquiteto padrão”, hein…
— Pode ir que ‘cobrimos’ a sua…
Bruno tentou melhorar a cara. Pensou em aceitar a proposta e ir almoçar – o estomago roncava de fome. Mas, avaliou. Se sair agora e ela chegar, perco de estar junto dela por mais tempo.
— Estou sem fome. Quero terminar o projeto.
— Então, melhora a cara – provocou Hildebrando, piscando maliciosamente para Marisa.
— Deixem de bobagem. Sabem que fico ansioso quando está terminando o prazo para entregar um projeto.
A bem da verdade, todos os traços de Bruno nas últimas horas eram feitos à margem da planta. Riscara ene vezes, de ene formas o nome de Fernanda. Olhar aquela rabisqueira foi a revelação – estava apaixonado. Irremediavelmente apaixonado.
Simples e complicado.
V.
Deu-se conta que acabara de por o pé em outra dimensão, em outro planeta. Um tal de Planeta Sonho. Mesmo com seus quase 30 anos e tantas vivências, surpreendeu-se era um mundo absolutamente desconhecido. Encantado e ameaçador.
Como num filme de ficção, abriu-se um arco-íris no céu da sua imaginação. Que logo se espalhou em cores por um caminho sinuoso e sem fim. O estômago vazio, a percepção do novo, o coração na mão. Um misto de alegria e medo. Um zoom na sua cabeça, e a vista escureceu. Sentiu uma tontura. A sensação de que flutuava e flutuava e flutuava…
— Bom dia, Bruno. Tudo bem? Me atrasei, né, gente…
Era a voz de Fernanda, mais melodiosa do que nunca.
Nunca antes, Bruno sentiu tamanha felicidade ao responder um simples “bom dia”. Olhar para Fernanda só comprovou a doce realidade. Às suas lapiseiras importadas, confessou:
— É a mulher da minha vida.
Simples e complicado.
VI.
Como sempre acontece em tais ocasiões, as mulheres mostram-se mais seguras. Mais perceptivas também. Bastou olhar para Bruno e perceber que ele estava diferente. Engraçado, ela também se sentiu diferente. Não precisou de mais do que alguns segundos para entender. Só o tempo de enxergar seu nome escrito de mil maneiras nas folhas na mesa do moço.
Gostou de se sentir “gostada”. Que mulher não gosta?
Por que não? – perguntou a si própria.
Como se nada tivesse acontecido, foi para o seu canto – e não deu a menor bandeira. Lembrou do futuro doutor Jorge, um médico promissor. O noivado anunciado. Os amigos comuns. Talvez fosse só uma alucinação. Um impulso. Melhor deixar pra lá…
Até que deixaria se não fosse a tal predestinação.
Era junho, dia 5 – e estava escrito.
Simples e complicado.
VII.
— Bruno, o projeto está pronto?
Vociferou o chefão com caras de poucos amigos.
— Precisa estar pronto hoje. Amanhã pela manhã, tenho uma reunião com o cliente. Se precisar de ajuda, chame a Fernanda – o que ela está fazendo pode esperar. Você, não.
Se é que me entendem, o bravo homem não precisou falar duas vezes. Foi só um jogo de palavras. A abençoada mão do destino. Os dois olharam-se cúmplices e foram conversar na sala de reunião. Traçar os próximos passos do projeto – e da vida. O que era para levar cinco ou dez minutos levou meia hora. Só não levou mais porque o velho Hilde foi se oferecer para qualquer eventualidade, com o sorriso maroto dos inconvenientes.
Simples e complicado.
VIII.
De volta, puseram-se a trabalhar entre olhares e sorrisos. Diria até que a cidade nunca teve um prédio de linhas tão inspiradas. Foi uma tarde/noite inesquecível. Terminaram pouco depois das 22 horas, com o escritório vazio e mais nenhuma dúvida.
Quer dizer, ainda pairava a sombra dos respectivos, já não tão respectivos assim…
Simples e complicado.
IX.
Bruno ofereceu carona. Mamão com açúcar, pensou. Melhor impossível.
Impossível mesmo!
Lembrou que estava sem carro, justo naquele dia. Emprestou o dito-cujo para a respectiva. Desculpou-se. Mas, não se perdoou. Percebeu que Fernanda ficou um tantinho decepcionada. Tentou contornar a situação e fez o melhor que pôde: acompanhou-a até o ponto do ônibus.
Caminharam calados. Apenas, se olhavam. Ele tentou falar. Não conseguia articular frase com frase.
— Não sei, está acontecendo algo comigo. Eu queria que você soubesse.
Ela adorou deixá-lo sem jeito.
— Meu ônibus vem vindo.
Ele tremeu na base. Iria perdê-la, como se nada houvesse acontecido. Insistiu.
— É que eu estou…
Ela não deixou que terminasse a frase. Deu um beijo mais demorado em seu rosto. As mãos se entrelaçaram. Um sorriso, um sussurro.
— Eu também, bobo.
Ele acompanhou com os olhos o desaparecer do veículo na escuridão da sexta-feira, dia 5, do mais antigo dos anos. No tempo em que o amor transformava o mundo num tal de Planeta Sonho.
[Texto publicado no livro “Volteios – Crônicas, lembranças e devaneios”]