“Domingo, 23, é dia de Jorge.”
Talvez fosse o cavalo branco e belo, ares de nobreza. Talvez fosse a armadura prateada, que confiava magnitude à imagem do guerreiro. Talvez ele próprio, então prestes a completar 4 anos, se imaginasse com coragem suficiente para embates e lutas. Que sequer podia sonhar seriam sua sina vida afora.
Fiquemos com o talvez. Fiquemos, pois, com o garoto. Que não teve dúvidas quando a amiga da mãe lhe perguntou carinhosa:
— Pisccinim, o que você quer de presente.
— Não precisa, Olga – rebateu a mãe zelosa.
— Quero aquele santo que tem um cavalo branco – respondeu convicto.
— Tem certeza – perguntou a moça.
— Tenho.
— Acho que meu filho vai ser padre. Deus o escolheu.
Coisas de mãe…
II.
No dia aprazado da tradicional festinha de aniversário, os olhos do garoto enlevaram-se quando viram a estátua, de pouco mais de 20 centímetros. Não era grande quanto a de Santa Rita de Cássia que o tio exibia na assobradada casa da avó materna. Nem pequena o suficiente para não se impor no meio dos seus brinquedos.
A mãe entendeu o que se passava na mente do menino.
— Não é para brincar, não. É para você olhar todos os dias. E pedir proteção.
Primeiro, o santo foi parar em cima do guarda-roupa. Mas, ele reclamou. Não conseguia ver direito. E o ‘brinquedo’ era dele. A mãe sorria, pegava um banquinho, subia e trazia o santo guerreiro para perto das mãos do garoto sonhador.
— Pede a benção, pede filho.
Ele gesticulava rapidamente o sinal da cruz. Mas, em seu pensamento, era parceiro do próprio cavaleiro que morava na lua e, destemido, enfrentava o dragão, com sua lança justiceira.
— Ele é príncipe, mãe?
Sem ter a precisão da resposta, a mãe abria um sorriso e recorria a fé.
— É um santo, filho. Um santo guerreiro, o corajoso Jorge da Capadócia que se converteu ao catolicismo. E morreu martirizado.
Demorou a entender. Mas, também, não era esse o enredo que queria para sua história.
— Que bicho é esse, mãe?
— É um dragão que põe fogo pelas ventas. Mas, não se assuste porque esse monstro não existe. É só uma simbologia.
— Ah!, sei…
Outra vez a mãe mudava o enredo da sua história. Então, desconversava. Mas, intimamente, não tinha dúvidas. Se o bicho aparecesse por ali, ele o enfrentaria com sua espada de pau. Mas onde arranjaria um cavalo branco?
III.
Segunda, 23 de abril.
Cinqüenta anos depois…
O homem acorda e, antes de ir para o trabalho, passa na casa da mãe. Vai tomar o café da manhã, rápido, mas obrigatório.
— A senhora está bem? Tomou os remédios?
As perguntas de sempre que ficam sem respostas. Pois, desandam, mãe e filho, a falar das notícias do rádio. Das irmãs distantes. Do neto dela – filho dele – que está um moço. Da vida como ela é – e sempre será.
— Vou indo… Está na minha hora. Benção mãe.
— Você esqueceu de rezar. Vai ver seu santo. Hoje é Dia de São Jorge.
Ela dá a costumeira risadinha quando vê que o filho faz meia volta e se encaminha para o quarto. Por alguns segundos, ele se posta a frente da velha cômoda. Ali, num altar improvisado, o ‘parceiro’ divide espaço com outros santos da devoção da senhora de 82 anos. A estátua está intacta. Só o branco do cavalo amarelecido pelo tempo. Mas, o porte do guerreiro continua impecável. Ainda e sempre na luta contra as forças do mal.
Sente-se em paz e protegido. Também se vê como um guerreiro. Não ganhou todas as batalhas. Mas, preservou a capacidade amar e as infinitas possibilidades do sonho. Não tem do que se arrepender. Fez e faz o caminho com o seu passo. Reza, agradece ao santo e ao milagre da vida.
— Vai com Deus, filho. Que São Jorge o proteja.
Hoje e sempre.
— Amém.
Ele sai para enfrentar o novo dia. Embates e lutas que sequer ousou sonhar. Tristezas, decepções. São apenas – e tão somente – uma simbologia. Saberá enfrentar com a coragem do menino que se fez homem e as bençãos do guerreiro que se fez santo…