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Solitário surfista

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Foto: Arquivo Pessoal

Desde que saiu de casa, não pensou um minuto sequer em voltar.

Não pensou mais em nada.

Tudo o que imaginou precisar reuniu numa mochila antiga, de lona, do tempo em que era um surfista descolado e o pai, empresário bem sucedido, lhe garantia a vida boa e descompromissada.

Foi há muitos e muitos anos.

(As mochilas não estavam sequer na moda.)

Lembrou o pai indo para o trabalho, com uma lustrosa mala 007.

Achava um horror.

Hoje apenas ri daquela aversão a tudo o que o pai representava – e usava: o terno em tom escuro, a camisa social branca impecável, a gravata de seda e a bendita mala 007 preta.

Bendita, sim!

Dali, brotavam as rentáveis mumunhas – e o sustento da família. Dele inclusive.

O pai, os amigos do pai e a família o chamavam de hippie pela aversão que demonstrava aos estudos, ao trabalho. E às convenções.

Gostava de estar no mar. Solitário, distante de tudo e de todos. Naquela linha um tanto além de onde as ondas arrebentam. À espera da onda certa que, hoje, enquanto caminha sem rumo, tem certeza: nunca lhe chegou.

Reconhece, no entanto, que o barato não era ‘pegar a onda’, deslizar até à beira da praia, estar entre os iguais, aquela bizarra turma de banhistas.

Queria mesmo ficar ali.

No balanço das águas, em silêncio, sobre a prancha, olhando a linha do horizonte.

Sem medos, sem sonhos.

Ver o sol se por.

Faz tanto tempo.

Tempo, aquele que não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém.

Conheceu Adele, uma francesinha, na praia. E se enroscaram.

A vida mudou um tantinho.

O pai, um dia lhe faltou.

(Mudou tudo.)

Teve que assumir o que chamou de bagaça.

Até que se saiu legal.

Na solidão das ondas e nas variações das cores quando o sol se põe, aprendeu o equilíbrio que as coisas devem ter e o senso de não ir além do que podem suas forças. Não provocar o desconhecido. Perceber as nuances.

Surpreendeu a todos pelo tino nos negócios.

Saiu-se bem.

Mas, dentro dele, sabia bem que aquele não era ele.

Era o outro. Quase ele. Quase o pai, os amigos do pai, a turba de banhistas sem intimidade com o mar que brotam aos borbotões nos finais de semana do verão.

Num final de tarde de domingo, depois do futebol na TV, foi até a garagem da casa para ver se havia esquecido o celular no carro – vital, indispensável engenhoca.

Sim, estava lá.

Olhou ao redor e, a um canto, se deparou com as velhas e carcomidas pranchas.

Bateu uma sensação estranha.

De perda?

Não soube dizer

Uma tristeza?

Preferiu não pensar.

Deixou o celular onde estava no assento do passageiro. Recuperou a velha mochila da estante dos inservíveis. E caminhou a passos miúdos e decididos para dentro da casa.

Na manhã do dia seguinte, acordou cedo.

Ficou à espreita.

Esperou que todos saíssem, encheu a mochila com uma muda de roupas.

Foi até a garagem. Pegou o celular e ligou para o Torlói, o faz tudo da empresa.

Disse que precisaria de uns dias “para resolver problemas particulares”.

– Vai tocando tudo, aí. Eu volto quando der.

Desligou.

Jogou o aparelho de volta pra dentro do carro.

E saiu a pé, sem rumo, sem prumo, a ruminar com um sorriso irônico a frase que disse ao amigo e funcionário:

– Eu volto quando der.

Para ele mesmo, e só pra ele, confessou num sussurro entre os dentes:

– Tomara que não dê…

E concluiu:

-Vou tirar a limpo essa história de ser hippie em pleno século 21.

 

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