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Tchinim e a Vila da Alegria

Não vou lembrar o nome da rua.

Sei que era (e ainda deve ser) uma travessa da rua Lins de Vasconcelos, no Cambuci.

Entre o segundo e terceiro quarteirão da tal rua, havia uma vila. De casas modestas, e gente divertida.

Desconfio que daí veio o apelido que lhe deram: Vila da Alegria.

Naqueles idos e vividos, televisão era privilégio de poucos.

A diversão era ouvir rádio.

Em noites claras e encantadas, a vizinhança espalhava as cadeiras sobre as calçadas – e todos os assuntos era,m passados em revista.

Os homens se espalhavam em discussões sobre futebol e política. Assim como existiam corintianos, palmeirenses e são-paulinos, havia janistas, adhemaristas e socialistas (eram raros, mas existiam).

As mulheres comentavam as tramas das radionovelas da Rádio São Paulo, trocavam, receitas, falavam dos filhos e ouviam dolentes canções de amor.

A criançada se deliciava em brincadeiras – pula-cerca, jogar ‘queimada’, esconde-esconde, pega-pega.

Era uma festa.

Em sua maioria, os moradores eram de descendência italiana.

Mas, havia também uma família de japoneses, com uma penca de filhos.

Mas, não se via diferença alguma.

Todos se consideravam, acima de tudo, brasileiros.

Deve ter sido a primeira vez que ouvi alguém dizer que o Brasil era “uma terra abençoada”.

E foi exatamente o sr. Katsumi, chefe da clã de olhinhos puxados.

– Quando embarcamos no Japão, não sabíamos o que nos esperava. Meu país é uma ilha. Toda a semana a terra mexe um pouquinho. A gente vive aos sobressaltos. À espera do pior. Como poderíamos pensar que chegaríamos no Brasil, um país de dimensões tão grandes, enormes? O Brasil é uma terra abençoada que não sabe o que é terremoto, vendaval, furacão. Será que o brasileiro sabe o que isto é uma dádiva?

II.

Tchinim gostava de acompanhar a avó Ignês em suas idas à Vila da Alegria.

Ao menos em uma das noites da semana, ela visitava à comadre, dona Pimeta, que era casada com o seo Giusepe, e tinha uma filha que se chamava Pia Rosa.

No caminho, entre a rua Lavapés (onde moravam os avós de Tchinim) e a Vila, era obrigatória uma parada na vendinha de Giusepe, na avenida Lins de Vasconcelos. Lá, enquanto aguardavam a comadre livrar-se dos afazeres do balcão para ir embora, o garoto quedava-se fascinado com o olhar fixo na gaveta repleta de bolinhas de gudes que estavam à venda. De beleza faiscante, Tchinim sonhava ser o feliz proprietário de todas elas – e, de posse de tamanha e invejável riqueza, considerava-se o homem mais feliz e poderoso do mundo.

Vez ou outra, o bom italiano o presenteava com uma ou duas daquelas inebriantes preciosidades, feitas em vidro e sonhos.

Generosidade que valia a noite – e o fazia delirar.

O garoto – como todos os garotos, creio; e inclusive alguns adultos – tinha uma tendência em imaginar coisas.

Daí que não ser raro ver-se como uma espécie de Ali Babá. Sem os quarenta ladrões, lógico.

Via-se, na calada da noite, entrando no empório pelo alçapão e o facho de sua lanterna a carvão a iluminar a gaveta encantada. Em rápidos gestos, todas aquelas pérolas multicoloridas passavam para a sacola que o salteador carregava. De quebra, ainda tomaria um guaraná caçula e partiria sem deixar vestígios.

Esconderia o tesouro na caverna mágica que existia em seus devaneios, e que se abriria assim que dissesse a palavra mágica, que só ele, Tchim, conhecia:

— Abra-te, Sésamo!

Ou seria:

— Abracadabra!

Ou ainda:

— Piririplimplim!

Bem, que a mãe lhe dizia para ter mais atenção ao ler os livros que o pai lhe dera.

E agora, o que faria?

Estava ali – em pleno sonho – com aquele pedaço saco de bolinhas de gude, pesado pra caramba, sem ter onde colocar.

Desistiu do sonho numa boa. Voltou a realidade! Ademais, era ruim demais jogando ‘caçapava’ pra valer. Seu tesouro – se é que um dia chagasse a ser seu – seria dizimado pelas bárbaras ‘estecas’ dos garotos da rua.

De verdade mesmo, ele gostava de jogar futebol.

Seria igual ao Mazzola, centro avante do Palmeiras, a quem o pai chamava de “o maior jogador do mundo”, naqueles fugidios e lúdicos anos 50, (A.P.). Ou seja, antes da Era Pelé.

III.

Naqueles idos dos anos 50, São Paulo já dava indícios da metrópole em que se transformaria.

Não conhecia motoboys, nem motoqueiros.

As lambretas ainda não haviam virado a coqueluche – o que aconteceria anos depois.

Eram raras as motocicletas que circulavam pelas ruas calçadas de paralelepípedos da cidade.

Chamava-se de motociclista quem possuía uma delas.

Pois não é que havia um motociclista que morava na Vila da Alegria.

Ele alugava um quarto na casa de um casal de idoso.

A moto dormia na calçada em frente à janela que dava para a rua e o quarto do rapaz. Ele a cobria com uma lona, dessas que os caminhoneiros usam para resguardar a carga.

Para a garotada da Vila, era um verdadeiro ritual vê-lo tirar a proteção da moto e fazê-la pegar, com fortes pedaladas.

O ébano da lataria ressurgia faiscante, e fazia surgir o monstro abissal que logo se punha a rugir.

Carros não entravam na Vila.

Daí que as chegadas e saídas do motociclista eram a principal preocupação dos pais.

Vários deles pediram prudência ao rapaz, pois os filhos e os amigos dos filhos viviam de brincadeiras pela Vila – e não seria justo poupá-los dessa alegria em função dos eventuais riscos pela passagem do veículo.

De olho nos encantos de Pia Rosa, a filha da dona Pimeta e do seo Giusepe, o motociclistas jurou todos os cuidados possíveis e imagináveis.

Era um bom moço, diziam todos.

Não raras vezes o viram subindo e descendo a Vila empurrando a ‘bichinha’.

Só que, mesmo assim, certa noite aconteceu o que todos temiam.

Foi num átimo de segundo.

O moço conversava com Pia Rosa na beira da calçada. Ainda inebriado pelo olhar da amada, acelerou a moto no exato instante em que Tchinim saiu do esconderijo e corria em direção ao pique.

O choque foi inevitável – assim como os gritos de socorro que vieram a seguir.

A Vila inteira saiu à rua para inteirar-se da quase tragédia.

Tudo não passou de um susto.

Quando o garoto voltou a si, estava na farmácia do Sr. Júlio.

Ostentava um pequeno corte no rosto – e um sorriso maroto.

Do atropelamento nada lembrava – para alguns, foi Tchinim que atropelou a moto. Mas, ainda sentia a maciez do colo de Pia Rosa, a primeira a lhe socorrer.
pedaladas.

O ébano da lataria ressurgia faiscante, e fazia surgir o monstro abissal que logo se punha a rugir.

Carros não entravam na Vila.

Daí que as chegadas e saídas do motociclista eram a principal preocupação dos pais.

Vários deles pediram prudência ao rapaz, pois os filhos e os amigos dos filhos viviam de brincadeiras pela Vila – e não seria justo poupá-los dessa alegria em função dos eventuais riscos pela passagem do veículo.

De olho nos encantos de Pia Rosa, a filha da dona Pimeta e do seo Giusepe, o motociclistas jurou todos os cuidados possíveis e imagináveis.

Era um bom moço, diziam todos.

Não raras vezes o viram subindo e descendo a Vila empurrando a ‘bichinha’.

Só que, mesmo assim, certa noite aconteceu o que todos temiam.

Foi num átimo de segundo.

O moço conversava com Pia Rosa na beira da calçada. Ainda inebriado pelo olhar da amada, acelerou a moto no exato instante em que Tchinim saiu do esconderijo e corria em direção ao pique.

O choque foi inevitável – assim como os gritos de socorro que vieram a seguir.

A Vila inteira saiu à rua para inteirar-se da quase tragédia.

Tudo não passou de um susto.

Quando o garoto voltou a si, estava na farmácia do Sr. Júlio.

Ostentava um pequeno corte no rosto – e um sorriso maroto.

Do atropelamento nada lembrava – para alguns, foi Tchinim que atropelou a moto. Mas, ainda sentia a maciez do colo de Pia Rosa, a primeira a lhe socorrer.

IV.

Tchinim ainda ouviu a recomendação da mãe para que levasse agasalho.

Gostou da ideia.

Levaria o blues jeans que havia ganhado da mana Dorothy.

Iria botar uma banca danada.

Só os artistas de cinema, tipo James Dean, tinham uma jaqueta igual à dele.

Ademais, àquela época do ano, as noites na Vila da Alegria eram frescas, úmidas –afinal, São Paulo ainda era a Terra da Garoa.

Mesmo depois da confusão que causou naquele quase atropelamento (leia post de ontem), gostava de acompanhar a avó, dona Ignês, naquelas visitas.

Sempre haveria o que fazer por lá.

Era época de futebol de botão que os garotos jogavam na calçada, transformando uma placa de compensado (chamavam de Eucatex) em campo de futebol.

Deu meia volta, correu para o quarto e pegou a caixa onde guardava o seu time, formado quase todo ele por celulóides; também conhecidos por tampas de relógio de pulso.

Foi uma noite daquelas.

Venceu todas as partidas que disputou.

Os garotos da Vila olhavam invejosos para o super esquadrão.

Só quando a avó apareceu na porta da casa de dona Pimeta foi que Tchinim se deu conta:

— Tchinim, pega a sua blusa, belo, que vamos embora…

Cadê o blues jeans?

Olhou para os lados – e nada.

Nosso campeão abriu o berreiro.

Começaram as buscas e as suspeitas.

Vistoriaram os quatro cantos da casa da dona Pimeta.

Olharam os becos e cantos da rua.

Lembraram que um dos garotos só viu o primeiro jogo, depois foi embora.

— Será que ele levou o casaco por engano?

Disse um dos presentes, eufemisticamente.

Foi mesmo um salseiro.

— Você não perdeu no caminho?, perguntou a bela Pia Rosa.

Ele sorriu sem graça, e envergonhado.

Seu choro incessante, de algum modo, culpava a todos e a si próprio.

Choro que, aliás, só cessou quando Tchinim entrou em seu quarto – e viu o blues jeans, igual ao do James Dean, largado, esquecido sobre a cama.

Entendeu o fora que dera.

Enquanto a avó dava graças a Santo Antônio e à Madona, a mãe nada entendia, Tchinim resolveu ser prático, como bom descendente de calabrês.

— Vó, promete não dizer nada para o pessoal da Vila, promete, promete?

— Prometo, mas por quê?

— Depois do escândalo que eu fiz, se eles souberem que eu havia esquecido o casaco em casa, eles não me olham mais na cara…

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