Amáveis senhores, amadas senhoras…
Cumpre-me a dificil tarefa de relatar neste espaço minhas andanças pela América Latina em janeiro de 2005. Pois é, camaradas, não me peçam para explicar os motivos. Apenas me ouçam, quer dizer, leiam para entender como são demais os perigos dessa vida.
Vamos ao relato, pois.
Este pobre escriba tinha festivos planos de chegar a Santiago do Chile, fazer a travessia dos lagos andinos, ir a Patagônia, Bariloche e Buenos Aires, onde compraria um legítimo mocassin argentino. Se po$$ível, esticaria até Punta Del Leste.
Era o plano… Mas algo aconteceu…
Cheguei mesmo a andar pelas terras de Pablo Neruda, com ares de turista internacional e jeitão de poeta, até que uma inoportuna contratura muscular me estatelou num quarto de hospital na distante Porto Mont — sul do Chile, a última região continental antes das terras geladas Patagônia que, por isso mesmo, vou continuar conhecendo só pelos cartões postais.
É uma história longa que terminou bem e, um dia, com menos ‘dolor’, prometo contar tim-tim por tim-tim. Não faltaram lances de ação (mesmo que eu estivesse literalmente travado) e personagens interessantes – o torneio de tênis que disputei em Guarapari antes da viagem, o piloto com jeito de Indiana Jones, o casal de médicos americanos, o prestativo guia Aguinaldo e até uma estranha ‘fada’…
Para dar uma ‘palhinha’, registro aqui o básico: uma velha conhecida minha (e de muitos de nós) – a Senhora Dor nas Costas – resolveu se manifestar em meio às minhas andanças. Como eu a tratasse com certo desdém (desde as partidas de tênis que disputei no fim de ano em Guarapari), quando cheguei a um povoado chamado Peulla (com exatos 130 habitantes) em meio a travessia dos lagos andinos, a dita cuja – com quem convivo há anos, diga-se – teve um chilique ( um, não… vários) e se transformou em contratura do músculo paralombar direito. Ou seja, tive câimbras nas costas. Não me perguntem como, nem porquê. Sei que eram dores terríveis, intermitentes (parecia que ia parir um allien) que só deram tréguas depois que uma médica american, hóspede do hotel em que estava (pois não há sequer posto médico no local) me receitou um comprimido com pequena dose de morfina (Foi o que entendi pelo gesto que fez). Resultado: dormi e tive sonhos bons; malucos, entrecortados por um estado de suavidade zen, mas bons…
No dia seguinte, um monomotor veio fazer o resgate deste pobre escriba num aeroporto improvisado com pista de terra batida e o escambau. Sobrevoamos o lindíssimo lago de Todos os Santos, entre a cordilheira dos Andes e a fina estampa do vulcão Ozorno. Conheci as preciosidades na ida, pois cheguei a Peulla de ‘catamarano’ (uma barcaça), em viagem que durou quase duas horas e há quem a acuse de ser a impiedosa causa dos meus ais.
Na ‘avioneta’, viajei numa maca improvisada, dessas de resgate que se vê quando há acidentes em São Paulo. E só consegui enxergar mesmo o teto cinza encardidinho e ouvir o ‘rooooommmm’ do motor. Aliás, não sei se foi efeito da noite anterior, mas nesses 40 minutos de vôo me lembrei da inesquecível Brasília azul, ano 78, que comprei no páteo da Volks naqueles priscos e bons tempos. Foi o meu segundo carro, se bem me lembro…
Essa ‘viajada que dei por conta própria talvez tenha sido uma forma de bloqueio. Só quando aterrissamos, fui lembrar que aquele lago – dito pelo guia no dia anterior – é maior do que a cidade de São Paulo em extensão e tem cerca de 350 metros de profundidade. Ufa…Aliás, quaisquer 45 centímetros de água já me afogariam, pois sequer conseguia me sustentar sentado…
Já no hospital em Porto Mont, o diagnóstico do médico chileno foi preciso: Síndrome de Dollor Lombar. Remédio: antiinflamatório com soro na veia, relaxante muscular de oito em oito horas, luz infravermelha duas vezes ao dia e três dias sem sair da cama, repouso absoluto…
— É desgaste, disse o bom senhor de branco que me atendeu solicitamente.
Confesso que achei razoável o parecer do doutor, depois confirmado pelos exames que fiz, incluindo raio x e tomografia da coluna. Só lamentei mesmo ter que dar razão ao bom homem quando completou o diagnóstico com a seguinte frase:
— Fique tranqüilo, Don Rodolfo. O senhor vai ficar bom. É assim: quando você não pára. É a vida que pára você…
Dias depois, Don Rodolfo respirou aliviado por deixar aquele fim-de-mundo – aliás, como os próprios chilenos chamam aquelas paragens. Precisaria agora enfrentar outras tantas peripécias antes de chegar a São Paulo. O roteiro inicial já era, teria de refazer tudo. Mas, agora estava exausto para pensar ou planejar qualquer coisa. E, mesmo com o corpo em cacos, prostrado fisicamente, sentiu a alma leve, estranhamente saltitante, a lhe soprar uma inadequada proposta para aquele momento…
— É, um dia a gente volta… No mínimo, para rever aquela fada madrinha que lhe apareceu, em sonhos na madrugada de Peulla. Era um tanto estranha. Vestia-se de cinza, igualzinho às recepcionistas do hotel. Mas, que interessante, usava uma bolsa de água quente no lugar da varinha de condão.