Foto: Arquivo Pessoal
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Há noites que são assim…
Por mais cansado que esteja, por maiores que sejam os desafios da manhã seguinte (e sempre os haverá!), por tudo e por nada, você acorda e não dorme mais.
Fica como ontem fiquei.
(A zapear desinteressado os mil e um canais da TV por assinatura, a fuçar ingloriamente a telinha do celular, a zanzar pelo apartamento às escuras, a achatar o nariz no vidro da janela que mostra uma cidade silenciosa, de luzes em tons de sépia, como se fosse uma foto antiga, onde o tempo finge que parou.)
Penso que melhor seria dizer: há madrugadas que são assim. Inquietas, e infindas.
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Incorporo este silêncio, esta paz — e a morna tristeza que vai em mim.
Que tempos são esses que ora vivemos?
Indizíveis.
Inacreditáveis.é
Sem qualquer resposta, mesmo com alguma resistência, penso cá comigo que tenho mais é que agradecer: pelo sim, pelo não, eis a paz.
Não é aquela, coletiva, universal, fraterna que tanto almejamos.
Mas, me sinto em paz.
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Enfim…
Cá estou remexer no velho baú de memórias e espantos que só a mim pertence. A ouvir, embaraçado, o arrastar de correntes de meus próprios fantasmas – uns mais, outros menos importantes em meu humilde e desconexo caminhar.
Curioso!
Estranho como aquele quadro na parede ganha vida neste exato momento.
Talvez seja o clarão que, de repente, do nada, atravessou a janela e, fugaz, iluminou a tela.
Me aproximo. Sei de cor a figura que o tecido estampa: uma destemida caravana a cortar o deserto sem fim.
O Saara, seria?
Homens de turbantes, túnicas, espadas. Uns aboletados em camelos, outros caminham.
De onde vêm, para onde vão?
Perguntas sem respostas.
Seus passos não deixam marcas. Dissolvem-se na areia de tom alaranjado e o tropel (insinua o artista) logo faz surgir uma nuvem difusa e ameaçadora.
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Súbito, algumas inquietudes me assaltam.
O que me fez comprar essa pintura num dia incerto do passado?
Não sou disso. Nem sequer pechinchei o preço. Foi num impulso, diria, lúdico, incontrolável.
O que a cena representa além da velha sina da Humanidade que é seguir do nada para lugar nenhum?
Teria algo de familiar ali?
Comprei por comprar.
Nunca pensei nisso antes.
Não seria agora, pra lá das três da manhã, que vou pensar.
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Não importa.
Escreverei sobre o tema para postar amanhã ou outro dia qualquer.
É provável que a vida desses beduínos e tuaregues só passe a fazer sentido a partir do desafio de atravessar o deserto, com seus mistérios e perigos e oásis.
Até que não é má a ideia: imagino-me um tuaregue.
O passo faz o caminho.
Seja qual for a jornada…
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Escrever dá sentido à vida.
Entendo assim a cada nova manhã apto (ou não?) a vencer a aridez da tela em branco.
(Minha tela hoje é digital, a do notebook; mas reconheço: por vezes, sinto saudades da velha Olivetti e da lauda em branco.)
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Mas, epa!
Há algo de estranho — em mim ou no quadro?
Um certo desconforto. Uma desorientação aleatória.
Acendo todas as luzes da sala, aproximo-me ainda mais e constato: os rostos desses homens são desprovidos de olhos, nariz, boca. Manchas que não revelam qualquer expressão, qualquer sentimento. Apenas o delírio de estar no meio da travessia.
O que me é mais perturbador: um dos caminhantes se parece tanto comigo.
Dúvida!
Será que olho ou sou olhado?
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Ah, essa manhã que não chega…
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* Justiça se lhe faça: a tela é assinada pelo artista Cândido Oliveira.
* Texto original publicado em abril de 2008.
O que você acha?