(Recuperei outro texto do meu baú virtual de truques, manhas e traquejos. Escrevi em 24 de dezembro de 2005, uma espécie de mensagem de Natal e Ano Bom que remeti aos amigos e afins. Quro reparti-lo agora com vocês, quem sabe a gente não salva o que resta deste ano — que, para mim, continua mais ou menos. Mais menos do que mais…)
I.
Certa vez, ouvi do ator Luiz Gustavo como foi sua estréia nos palcos da extinta TV Tupi nos idos dos anos 50.
Ele era um garoto que andava pelos bastidores da emissora do Sumaré, em São Paulo, onde hoje funcionam a MTV e a ESPN Brasil. Tinha livre acesso aos estúdios por ser cunhado do faz-tudo Cassiano Gabus Mendes, que depois se transformou num grande autor e diretor de novela da TV Globo.
Luiz Gustavo chegava no início da tarde e só ia embora por volta das 23 horas quando as transmissões se encerravam após o noticiário Diário de S.Paulo na TV, com os jornalistas Tico-tico, Carlos Spera e Maurício Loureiro Gama.
No entanto, o que mais ele gostava de fazer era acompanhar as montagens do TV de Vanguarda que ia ao ar aos domingos, e sempre ao vivo – não existia vídeo-tape. A coisa era na raça e em preto-e-branca.
Quase sempre o teleteatro encenava clássicos da dramaturgia mundial, e os atores de então – Lima Duarte, Márcia Real, Cleide Yáconis, Hamilton Fernandes, Raul Cortês, Juca de Oliveira, Araci Balabanian, entre outros – começavam a ensaiar na sexta para na noite de domingo enfrentarem as câmeras e o desafio da representação.
Óbvio que os erros eram comuns. Mas, os atores improvisavam, e sempre davam um jeito de se divertir e que tudo terminasse bem.
Um dia, o inevitável aconteceu. Um figurante faltou, e precisavam de alguém que o substituísse. Nada de especial. Ele seria um mensageiro e teria que entrar em cena num dado momento. E responder: “Sim, meu rei“.
Claro que sobrou para o menino Tata – apelido do ator. O cunhado, zeloso como só e acontecer, simplificou ainda mais.
— Tatá, vc entra em cena e diz apenas: “Sim!”, ok?
Perfeito. Nenhum mistério. Fácil.
Cassiano, porém, não contava com o bom-humor dos outros atores.
O teleteatro era dividido em três atos. E o garoto nervoso esperava a vez de dar seu recado logo no início do terceiro e último ato.
Enquanto a montagem corria solta, já com a TV no ar, os atores entravam e saíam de cena. Mas, antes perturbavam o pobre estreante.
— Olha lá, já sabe o que vai dizer?
— Sei.
— Sei, não. É sim. Sim, ouviu.
Vinha outro e dizia:
— Não é sim. É não.
— Não ou sim? Era sim, agora é não.
Um terceiro reforçava a confusão.
— Sim, é não.
— Ai, meu Deus.
E mais um aparecia.
— Não, não põe Cristo na História. Estamos em Roma, lembre-se em Roma.
E o não é sim, entendeu…
Sim, não. Não, sim. Sim. Sim. Não. Não. A cabeça do menino parecia um tamborim. Chegou a hora. O mensageiro Tatá entrou em cena e, seguro de si, resolveu dizer a frase toda.
— Nim, meu Sei, Nim…
II.
Pois é minha gente. Lembrei dessa história quando pensei em escrever essa crônica de Natal. Por mais que enfileirasse argumentos, não cheguei a qualquer conclusão. Então, resolvi definir 2005 como um ano NIM.
Foi um ano bom. Embaçado, eu diria. Mas, bom.
Melhor ainda: está terminando – o que nos propõe aquela fase de revisão básica da vida que se viveu, dos sonhos que se sonhou. Do que se fez ou se deixou de fazer.
Foi um ano NIM da nossa vida – minha, sua, de todos. Dos que rezam e não crêem. Dos que olham e não vêem. Dos que crêem e não rezam. Dos que vêem e preferem não olhar. Dos que se entregaram à luta. Daqueles que só deixaram acontecer.
Todos vivemos. De olho no triste noticiário dos jornais, no saldo estourado do banco, no visor do PC para saber se tem email, na previsão do tempo – vai chover?, no trânsito que não anda, nos recados do orkut (oh, praga!), na mentira que não cola, na vitrine do shopping, no out-door da Giselle Butshen, no livro da Danuza, nos amigos que não dão notícia, na moça que não decide, na cidade que corre, no tempo que voa…
III.
Não me perguntem porquê. Mas, este ano NIM me fez lembrar Cristóvão Bastos e Chico Buarque e a canção que propõe um tempo de delicadeza. Aquela que, lá pelas tantas, os versos pretendem descobrir “no último momento um tempo que refaz o que desfez. Que recolhe todo o sentimento e bota no corpo outra vez”.
IV.
Êta, sô!, como diz o mineiro. Esse poema bonito me remete a um sábado, há uns cinco, seis anos. Não era 24 de dezembro como hoje, mas estava por ali. Clima de Natal, quer dizer: clima de compras de Natal à solta.
Fui parar no Conjunto Nacional, ali entre a Augusta e a Paulista, depois de gastar o que tinha e o que não tinha em uns trapinhos para cobrir, talvez, a nudez da alma. A idéia era torrar mais alguns trocados na ‘Coordinatti’, uma loja com nome italiano e caimento, idem; situada naquela galeria.
V.
Um tanto agastado com a minha delinqüência consumista, parei no balcão do ‘Viena’ para um café. De repente, um som de saxofone revelou o inevitável, o que nenhuma das mais renomadas grifes seria capaz de cobrir.
As frases da melodia soltas no ar, tal como a onda de um doce tisunami, inundou corpo e alma, aflorou sentimentos imprecisos e desaguou nos olhos, incontroláveis e conta-gotadoramente.
Era só uma canção. Chama-se, me parece, “Todo sentimento” – e revelou a dor das coisas que perderam. O rapaz a glorificar a sua arte improvisava acordes tocantes que me trouxeram a sensação de que a vida não vai muito além de um belo improviso. Em nome do que se faz, e do que se é. Ser feliz é tudo o que se quer, diz outra canção.
Quando isso não acontece, repetimos o que mandam as velhas partituras que, como sabemos, nem sempre manifestam o que sentimos, o que sonhamos, o que verdadeiramente somos. Mas, nos fazem política – e tediosamente – corretos, e a salvo de julgamentos extemporâneos e incômodos.
VI.
Quando acabou de tocar, o músico de rua, que ali fazia ponto e ganhava a vida, percebeu minha emoção. Veio em minha direção e disse:
— Quer que eu toque de novo…
Agradeci, sem jeito e surpreso.
— Melhor não…
E deixei um bom trocado no boné que estendeu a outros incautos ouvintes.
Tive ali a certeza que ele nasceu para ser músico. Pois, mesmo que não soubesse ler partituras, soube – e como! – ler a alma de um cara triste.
Hoje, eu diria: de um cara NIM, mas que viveu um momento inesquecível.
VII.
Tomara 2006, a gente represente legal o nosso papel. E tenha a coragem grande de dizer SIM. Tomara a gente viva com a emoção à flor da pele. Tomara uma canção nos conduza aos sonhos – e nos emocione às lagrimas. Tomara você consiga dizer para alguém:
— Você é tudo o que sempre quis para sempre.
E tenha como resposta um brevíssimo sorriso que é a deixa para a fala mais do que esperada:
— Sim, meu rei. Nós somos todas as canções.
Que belo improviso. Tente. Vale o risco. Viver sem amor, acredite, é um baita equívoco.