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Um dia qualquer *

Houve uma vez um 20 de setembro. Sexta-feira como hoje é. Tarde mormacenta, e cálida. No horizonte, nada além do que a silhueta da cidade e o céu a dispersar sonhos e proezas.

Até que o telefone tocou – era um aparelho fixo, celulares e afins não existiam.

Creiam, não existiam e nem se imaginava que um dia poderiam vir a ser concebidos.

Retomo a cena:

Até que o telefone tocou…

– Oi. Sou eu, Naná. Surpreso?

AC parou tudo o que estava fazendo.

(Chamava-se Antônio Carlos, mas todos só o conheciam como AC).

Depois de um brevíssimo silêncio, em que ele quase perde a respiração, respondeu monocórdico:

– Oi…

Senhora da situação – e dos devaneios do rapaz – ela não se fez de rogada:

– Então, o que você vai fazer hoje à noite?

No turbilhão, causado pelo apagar e acender dos sentidos (tal e qual essas luzinhas natalinas), claudicou outra vez na resposta:

-Eu? Bem… Então…

Naná estava á vontade para ser enfática, e definitiva. Desde que se conheceram, AC a cercava, jogava com as palavras, olhares e mais olhares – até um colarzinho de madeira, chinfrim que alguém apareceu vendendo, ele comprou e a presenteou.

Nunca se imaginou dando trela para o rapaz. Tinha lá uma fama de conquistas. Que, por vezes, a incomodava:

“Quem ele pensa que eu sou”, pensava.

Mas, de um modo amplo e irrestrito, se divertia com o flerte e a pose de sedutor que fazia questão de exibir.

Nunca cairia naquele converse.

Naquela sexta, porém, 20 de setembro como hoje é, nada mais inspirador a fazer, sozinha em casa, resolveu esticar a brincadeira e dar um trote no tal. Ligou por ligar.

Ao perceber a hesitação de AC (“Bem… hoje, eu… Então…”) sentiu-se lisonjeada.

Resolveu avançar o sinal. Desconsiderou a possibilidade (como havia planejado) de inventar uma desculpa no decorrer da conversa, e fechou questão:

– Às oito e meia, hoje. Te espero na portaria do prédio onde moro. Ok?

Ouviu a confirmação do outro lado da linha – e festejou e se arrependeu e seja-o-que-Deus-quiser e agora e enfim…

– Aí que besteira que eu fiz.

Para escapar a arrependimentos outros, tranqüilizou-se a garantir para si mesmo que seria aquele encontro – e só. Nada tinha a perder.

Ouço, comovido, a história de Naná, – e arrisco cutucar a fera:

– E aí? Foi bom?

Brilham de um jeito bom os olhos da jovem senhora, antes da resposta:

– A vida nunca mais foi a mesma.

II.

Ainda sobre nossa conversa de ontem, convido meus cinco ou seis amáveis leitores a conhecerem o outro personagem da história que lhes contei.

Por um desses casos do acaso, conheci AC quando ele e Naná, a mulher da sua vida, já não estavam mais juntos.

Era bem quisto na velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor, onde trabalhamos.

Era um dos nossos, embora preservasse certo distanciamento da turma – talvez fosse em função da idade (tinha uns dez anos a mais), talvez fosse pela personalidade ou mesmo pelo estilão de ‘lobo solitário’ que escolheu fazer naquela fase de sua vida.

Esporadicamente participava dos ruidosos pós-expediente, das noitadas que o pessoal engendrava. Mas, no dia seguinte, se divertia a ouvir as venturas e desventuras dos amigos na implacável ronda pelos bares.

Aliás, era de sua preferência ouvir mais e falar menos, salvo se o assunto fosse jornalismo que alguns diziam ser sua segunda grande paixão.

Nunca ousei perguntar qual seria a primeira.

Hoje, posso imaginar qual (ou quem) seria…

Bem-humorado na maioria dos dias, tinha lá um jeito triste de sorrir e de tocar a vida.

Quando a conversa descambava para um tema m ais pessoal, era enigmático, gostava de generalizações e, via de regra, fechava questão sem fazer qualquer tipo de juízo de valor. Dizia-se versado e proseado no lema ‘viva e deixe viver’.

Mais de uma vez, eu o ouvi definir o amor como ‘um infinito desassossegar-se’.

— É como caminhar sobre brancas nuvens…

Talvez pensasse em Naná nessas horas.

Aliás, é certo que pensava em Naná.

Explico o porquê.

Em outras ocasiões, quando lhe perguntaram o dia de seu aniversário, eu o vi afirmar, com sorriso vitorioso:

– A data oficial não tem lá grande importância. Mas, coloque aí, para a vida, eu nasci em um inesquecível 20 de setembro.

III.

O mundo é grande e cabe
nessa janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
No breve espaço de beijar.

Trago-lhes a poesia de Carlos Drummond de Andrade (O mundo é grande) para saudar os dias de Primavera que hoje se iniciam.

Aproveito o ensejo para fechar o ciclo das crônicas Um Dia Qualquer (um e dois) com outrio poema, também de Drummond.

Chama-se Amor que, de forma involuntária – até porque uma Primavera é mais florida que a outra – reproduz um tantinho a história de Naná e AC:

O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime selo
Que à vida imprime cor, graça e sentido.

*

“Amor” – eu disse – e floriu uma rosa
embalsamando a tarde melodiosa
no canto mais oculto do jardim,
mas seu perfume não chegou a mim.

Um adendo:

Os poemas estão niolivro “AMAR se aprende amando”, de Carlos Drummond de Andrade.

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