Na aula de História do Jornalismo Brasileiro, não resisto a provocação e pergunto aos estudantes: haveria espaço hoje para o jornal Notícias Populares, que era assumidamente sensacionalista e voltado para as classes C e D?
As respostas são sempre difusas – mas, na maioria, os futuros jornalistas dizem que não. Não haveria mais lugar, nos ditames do jornalismo moderno, para o velho NP que, nos anos 60, criou o discutido “jornalismo fantástico”, reportagens inverossímeis como o “bebê-diabo” e o “chupa-cabra”.
Antes de propor o debate, exibo um documentário com a história e a luta do jornal, fundado em 1962 para fazer frente ao popularíssimo Última Hora. Não há dúvida que, já no DNA, o Notícias Populares era um jornal escrachado. Mas, os velhos jornalistas, comandados pelo romeno Jean Mellé e depois por Ebrahim Ramadan, cuidavam para não colocar fontes e entrevistados a execração pública.
Ramadan, inclusive, usava de um recurso bastante engenhoso para ‘manchetar’ as edições diárias do NP. Fazia três ou quatro títulos e os submetia à votação junto aos contínuos do jornal. O que vencesse ilustraria a primeira página no dia seguinte, e em letras garrafais.
Era um modo de estar em sintonia com os leitores, falar a língua deles, respeitá-los – mas, esclareça-se, não eram eles que determinavam o assunto a merecer destaque.
No início dos anos 90, o NP passou por uma ampla reformulação para enquadrá-lo aos novos tempos e tentar dar um equilíbrio ao furor sensacionalista. Uma nova geração de profissionais de Imprensa assumiu o comando.
Durou pouco a fase de comedimento.
Empolgada pelas boas tiragens, logo a rapaziada estava fazendo pior.
Lembro que num dado momento do documentário, a nova editora do NP, Laura Capriglione, faz um méa-culpa e diz mais ou menos o seguinte:
— Quando recebíamos os boletins de tiragem, era uma festa na redação. Subíamos nas mesas para comemorar. Aí, na edição seguinte, aumentávamos um tom acima na manchete. Carregávamos mesmo. Partimos com tudo para o bizarro e para o sexo. Às vezes, o jornal era só sexo mesmo…
Na noite de domingo, o Fantástico bateu o recorde de audiência – algo em torno de 33 pontos de média no Ibope e picos de 43 pontos nos 24 minutos que durou a entrevista, com Ana Carolina Oliveira, a mãe da menina Isabella. É gente pra dedéu. Dizem que cada ponto equivale a 55, 5 mil domicílios, só na Grande São Paulo onde se realizou o levantamento…
Imaginei os jornalistas do Fantástico em cima das mesas a comemorar os inigualáveis índices de audiência, com entrevistas no melhor estilo NP. Com uma diferença. Estão reféns da opinião pública, longe, muito longe do bom jornalismo que apregoavam alguns dos meus velhos camaradas.
II.
Não vou lembrar o ano. Mas, faz tempo que recebi essas lições que não constam de nenhum livro, compêndio, tese ou dissertação. Não existia o São Google para consultas imediatas de terceiro grau.
Aliás, nem computadores havia nas redações.
Eram tempos da velha máquina de escrever. O fotógrafo era chamado de “lambe-lambe” e o repórter de “canetinha”. Assim nos divertíamos enquanto cortávamos a cidade atrás de uma “matéria” que virasse primeira página no dia seguinte. Tínhamos hora para entrar – ali por volta das 13 h, nunca para sair.
Era garoto – pouco mais de 20 anos – e sentia um baita orgulho de ser jornalista. Um orgulho que cresceu ainda mais quando conheci um velho jornalista aposentado. Chamava-se Flávio Xavier de Toledo e, em tempos idos, fora redator do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Era um senhor distinto, elegante que, àquela altura da vida, morava no pacato bairro do Jardim da Saúde, zona sul de São Paulo.
Aliás, era o motivo do encontro. Ele queria dar uma força para os movimentos populares que reivindicavam melhorias para a região e, jornalista que era, fez questão de me dizer, a primeira coisa que pensou em fazer foi contatar a imprensa “para apoiar a causa”.
— A imprensa, filho, é a expressão do pensamento social.
Achei a frase bonita. Mas, formal demais para quem, como ele, participou da revolução que o JB promoveu no jornalismo brasileiro em meados dos anos 50, com a introdução do lead, a valorização do planejamento gráfico, entre outras conquistas.
Anos 70. A ditadura a impor os rígidos limites da censura à Imprensa. A sociedade desinformada – e, provavelmente por isso, silenciosa. Os jornais a estampar receitas de bolo e versos de Camões no lugar das reportagens vetadas pelos censores. A resistência de artistas, intelectuais, estudantes e bravos jornalistas.
Flávio era um deles.
Com essa iniciativa, queria agrupar os moradores do Jardim da Saúde em entidades representativas e, a partir daí, ter mais peso nas decisões Era bonito vê-lo fiel ao sonho da transformação social que, àquela altura, era assunto presente em todas as rodas de profissionais de Imprensa.
Andamos pelo Jardim da Saúde. Entrevistei moradores e comerciantes sobre os problemas locais e as sugestões para resolvê-los. Alguns se transformaram em líderes comunitários, como preconizou o jornalista. Lembro ter destacado o trabalho do Plenário da Zona Sul, que tinha como presidente o médico Eduardo Campos Rosmaninho.
Foi uma matéria simples, mas gerou frutos.
Gostei de escrevê-la.
— A imprensa, filho, é a expressão do pensamento social. Mas, nunca o jornalista pode ficar refém da opinião pública…
Aprendi tanto com o jornalista Flávio Xavier de Toledo. E ainda ganhei de presente um pequeno boton, desses que se usavam na lapela do paletó.
Era da Ordem dos Velhos Jornalistas.
III.
Passei a usar o ‘pin’ na lapela da minha jaqueta. Não que me considerasse um experiente homem de Imprensa, mas era uma espécie de reverência àqueles que me precederam em tão nobre missão. Aqueles que conhecia pessoalmente (Flávio, Marques, Zé Jofre, Nasci, o cronista esportivo Ari Silva, Vladimir Herzog que foi meu professor na Escola de Comunicações e Artes da USP, entre outros) e os que admirava à distância – Rubem Braga, Carlos Heitor Cony, Cláudio Abramo, Mino Carta, Zé Hamilton Ribeiro e Marcos Faermann para ficar só com os obrigatórios e não nos enredarmos num listar sem fim de nomes.
Para ser franco, nunca soube se a tal Ordem dos Velhos Jornalistas existia mesmo e que piano tocava nessa dolente valsa da vida. Aliás, devo-lhes outra confissão: nunca fui ligado a sindicatos, associações, movimentos representativos disso ou daquilo. Sei que há quem veja aí um deslize da minha parte, mas…
De qualquer forma, achava bonita a idéia de uma Ordem dos Velhos Jornalistas. Era uma espécie de sublimação. Entendia a Ordem como uma confraria a que pertencessem todos os jornalistas depois perfazerem longos e longos anos de estrada. No fundo, no fundo, meus caros, creio que almejava, um dia lá na frente, ser um desses notáveis, pertencer a esse Conselho de pajés que esbanjavam talento, coragem e sapiência.
Será que eu chegaria lá?
Era pergunta que fazia aos meus descorçoados botões.
O implacável conta-gotas do tempo fez a parte que lhe coube, cabe e caberá. Meus cabelos branquearam, o broche desapareceu e nunca mais ouvi falar da Ordem. O Brasil democratizou-se e os jornalistas abandonaram as máquinas de escrever. Viraram multimídias e cousa e lousa e mariposa…
Foi no século passado, alguém há de dizer.
Mas, convenhamos, nem faz tanto tempo assim…
Querem saber?
Ando abestalhado – mais do que o costumeiro, diga-se – de ver o jornalismo a ano-luz de distância do que apregoavam esses senhores.
Confesso.
Fiquei constrangido ao ver uma repórter de TV tentar interceptar o trajeto da madrasta da menina Isabella no dia da prisão, com o microfone em punho. A moça foi jogada longe pela ação dos policiais que abriam caminho aos trancos e barrancos até a viatura. Fiquei a imaginar que tipo de entrevista ou de declaração a tal repórter pensou colher ali. Que informação jornalística a acusada poderia lhe passar naquele instante de terror? Nenhuma. È certo que a jovem repórter televisiva foi pautada por algum editor ou chefe de reportagem. Ambos igualmente ávidos em transformar o fato jornalístico num grande evento para satisfazer a morbidez das massas.
Sei bem que Jornais e Jornalistas – e grafo de propósito em maiúsculas – não são isentos de erros. Ao contrário. Vivemos no fio da navalha dos prazos de fechamentos da edição, das pressões políticas e editoriais – sim, porque o jornal tem um dono –, dos interesses escusos à atividade jornalística. A História da Imprensa está recheada de casos assim a se lamentar. Para ficar em dois exemplos recentes e amplamente debatidos, citemos o Caso da Escola Base e o Crime do Bar Bodega; aliás, histórias de equívocos bem próximos aos que agora cometem policiais e jornalistas.
O mais grave, porém, é que estamos cada vez mais mecanizados, robóticos. Sem controle do que fazemos.
A lição do amigo Flávio anda esquecida. E é elementar. Por isso, torno repeti-la aqui:
— A imprensa, filho, é a expressão do pensamento social. Mas, nunca o jornalista pode ficar refém da opinião pública.
[Versão publicada no blog do Uol com o título "Sobre Jornais e Jornalistas"] [Texto também publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]