por Illênia Negrin
Sexta-feira, dia 20 de julho, fim da minha segunda viagem a Cuba, que durou um mês. Estava ansiosa para chegar ao aeroporto José Martí, em Havana. Ainda não sabia como faria para me livrar daquele ovo – sim, um ovo, botado por uma galinha cubana, com clara e gema dentro – que eu carregava numa sacola de plástico. Um ovo. Havia depositado nele todas as minhas angústias. Talvez ele fosse a garantia do meu sucesso. Temia que meu lugar no vôo não fosse confirmado – a Cubana de Aviación era desorganizada, o fato de ter passado três horas na fila dias antes para confirmar a volta não garantia meu assento no avião – e não tinha mais dinheiro nenhum, caso precisasse ficar por mais alguns dias. Mas, esse era apenas um dos problemas que me atormentavam. Na verdade, estava em pânico.
Tinha medo de que a emigração revistasse minha bagagem de mão e confiscasse as 20 fitas cassetes com as entrevistas que havia feito. Não tinha autorização necessária para fazer um livro – o governo mantém sob rígido controle a entrada de jornalistas estrangeiros na ilha – e não teria como explicar a presença delas ali. Perderia um mês de trabalho duro, em que tive de entrevistar cubanos às escondidas. Muitos não quiseram dar entrevistas com medo de sofrerem algum tipo de sanção. Outros concordaram em falar, mas pediram que o nome ou sobrenome fosse omitido. E houve também quem quisesse cobrar para dar o depoimento.
Na minha primeira semana em Cuba, um funcionário do Ministério do Interior me procurou na casa de Marta, amiga que me hospedou em Santiago, para investigar o que eu estava fazendo. As notícias correram e, por mais que tivesse mantido certa discrição, alguns informantes já sabiam que alguém havia conversado com Haydée, uma contra-revolucionária declarada, que fez duras críticas ao regime fidelista. Interrogada pelo senhor de farda, neguei que estava fazendo entrevistas e insistia que estava na ilha à passeio. Fingi que estava sendo sincera, ele fingiu acreditar em mim e ficou o dito pelo não-dito. Depois disso, a insegurança tornou-se minha fiel companheira de viagem. E se meu nome estivesse na lista negra da Imigração, que me surpreenderia assim que mostrasse o passaporte para sair do país? Eu era mais uma clandestina, como muitos cubanos que ganhavam a vida na ilegalidade.
O ovo seria a salvação, disse Eduardo, amigo sincero (uma espécie de “pai-de-santo” cubano) que decidiu me ajudar. Recomendou que eu passasse o ovo, untado com manteiga especial fornecida por ele, por todo o corpo, antes do banho. Que o levasse comigo e, antes de entrar pela porta do aeroporto, o jogasse para trás e pedisse com fé. “Eleguá, dono dos caminhos, que com esse ovo se rompa todo o mal que me persegue”. Que não me preocupasse, porque em Cuba era normal atirar ovos pela calçada do aeroporto, ninguém estranharia. E assim foi feito. Às 18 horas daquela sexta-feira, o ovo espatifou-se no chão e Eleguá tornou-se meu cúmplice. Duas horas mais tarde, passei pelo corredor da Imigração, cheio de sorrisos de homens e mulheres de verde que faziam o controle de embarque. “Tenga um buen viaje”, desejou uma senhora simpática, depois de olhar o passaporte, sem notar que eu tremia – de alívio.”
* Trecho de abertura de Yo Soy Cubano – Retalhos da Ilha, livro-reportagem apresentado pela jornalista Illenia Negrin como Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo. Orientei o projeto ao lado da professora doutora Verònica Patricia Aravena Cortês. Foi minha primeira orientação e justamente a uma queridíssima e talentosa amiga que há tempos não vejo.