I.
Ben é assim…
De som em som. De silêncio em silêncio, o homem – sim, porque era um homem, não um rapaz, menos ainda um moleque, era um homem “no melhor momento da vida”, gostava de dizer – pois como eu dizia, o homem assim escrevia, passo a passo, a própria história…
Sempre se orgulhou de estar “no controle”, como também gostava de dizer. Aliás, os prezados leitores já podem perceber, o dito-cujo gostava de dizer tantas coisas sobre ele mesmo, os outros e tantos e tamanhos. Ia de romances, aventuras, mistérios. Que, para lhes ser sincero, não raras vezes seus interlocutores – entre os quais me incluo, para o bem ou para o mal – não sabiam se ele era ele ou se era uma das tantas histórias que contava/inventava…
Pois esse homem, creiam, um dia me disse que era capaz de se transformar em canção. Eu sei, vocês podem estar me achando maluco – e reconheço que não serão os primeiros, nem os únicos -, mas, só estou vendendo o peixe como comprei. Se quiserem, posso parar por aqui?
II.
Tá bom. Então, eu continuo…
Como vocês, relutei em acreditar. Mas, deixei – aliás, como vocês estão fazendo agora – que a pedra da conversa rolasse, morro abaixo, para ver o estrago que causaria lá em baixo. Mesa de bar é zona franca. Ou não seria propriamente um bar onde estávamos? Deixa pra lá…
E ele me contou como se dava o milagre…
Eram necessárias algumas conexões. Um naco de saudades. Outro tanto “de bons ou maus momentos intensamente vividos”, essas coisas que se sente quando vem aquele abestalhamento natural dos apaixonados. Ele, por exemplo, estava há uns dois meses sem ver a mulher amada. Foi o que me disse e eu acreditei. Verdade verdadeira que, aqui vai um particular meu, acho que a moça que não sei quem é faz muito bem de correr daquele mala. Mas, voltemos ao nosso roteiro.
Sem vê-la, ouvi-la ou emeia-la, mesmo assim o moço estava convicto. O fim não era o fim. Ainda não…
III.
Era uma impressão, mais do que uma verdade absoluta. Dessas que só os raros e privilegiados sabem manter vivas, intactas. Andava triste, tristinho. Mas, para não plagiar mais o personagem do Zeca Baleiro, até porque ele não achava tão sem graça a top-model magrela na passarela, decidiu ir ao show do Benjor.
“Para levantar o astral”, argumentou consigo mesmo e depois ali comigo ao narrar os fatos que se seguem…
— Show do Benjor, você imagina, é sempre uma celebração à alegria. Uma festa.
Difícil ouvir um estranho que falava em tom professoral, que bem conheço. Parece que estou a me ouvir…
— O Caetano (Velloso) já definiu Benjor como o maior poeta da música popular brasileira. Exagero de amigo, concordo. Mas, são divertidas e pontuam a melodia maravilhosamente . O ritmo e as palavras nos envolvem e arrastam, não é?
IV.
Nunca havia pensado nisso. Portanto, não sabia o quê dizer. Mas, sei lá o porquê, enquanto falava, a voz do homem e o lugar se transformavam. Melhor: o ambiente fora tomado por uma súbita onda de realismo fantástico. Uma canção se espalhava. Solta. Suingada. Inebriante. A projetar sonhos e palavras que nunca me ocorreram. Mas, ops, me eram conhecidas…
Ela vem chegando
E feliz vou esperando
A espera é difícil
Mas eu espero cantando
Seria o homem virando canção? Entre um verso e outro, ouvia a voz do homem — ou seria a minha? — a interpretar a letra em tom narrativo e coloquial, a seguir os próprios pensamentos…
— Sabe, pensei em usar H maiúsculo para narrar a nossa história. Mas achei exagero. Quem sabe se um de nós ou os dois virarmos celebridade. Vai saber?
Era como se ele (ou eu, sei lá) falasse à mulher amada. E a música de novo, a girar. Que lugar é esse? E essas pessoas que se divertem e cantam e dançam?
Pois uma flor é uma rosa
Uma rosa é uma flor
É um amor essa menina
Essa menina é o meu amor
IV.
— Disse. Repeti. Falei dezenas de vezes. Somos todas as canções. Você não acreditou. E agora? Acredita? Essa, do Benjor, é das antigas. No primeiro verso, você e eu. “Me espera?” E aqui ainda estou, com a sensação que você veio ou está vindo – não, não você veio mesmo, mas pode voltar, fugir a qualquer momento. “E se alguém na balada me fizer rir?” E toca eu explicar o inexplicável…
— A segunda estrofe é quase um esclarecimento que o poeta nos faz. Ou seja, flor e rosa = a rosa e flor. Amor menina = menina amor…
Não estou sabendo explicar todos esses parangolés. Seria mais uma história do homem que gostava de contar histórias? Ou aquilo era uma casa de shows e eu ouvia a música e, em pensamento, dialogava comigo mesmo?
— Somos assim. Assim que somos. Entendeu???
Se a tal moça estivesse aqui, responderia de pronto: “Entendi”. E continuaria em silêncio. E ele (ou eu) sem nada entender. Até porque ele ou eu, os diletos leitores ou seja quem for, ninguém nada está entendendo de tanta, digamos, liberdade poética.
— Você gosta do meu amor que tem um jeito especial. E eu tenho um jeito especial de amar você. Pelas convenções do tempo. Do vento. Da sociedade. Do óbvio. E dos iguais…
V.
Por isso e aquilo, você e eu (ou ele?) ou qualquer um, até o amigo leitor – já que chegou aqui agora é considerado cúmplice – prefere ficar quieto no seu canto. Dormir num mundo onde essas alegorias não estivessem à espreita. Quantas vezes, não preferimos fazer de conta que não é com a gente. Melhor mesmo, é sempre se auto-incluir fora dessas roubadas. Ou, no mínimo, dar uma “escapadinha” para sentimentos e práticas que não nos envolvam por inteiro.
Mas, é inexorável. Ninguém foge ao Destino…
Nós também, mesmo que por segundos, não escapamos. E fomos e seremos?
Talvez…
— Sempre disse que queria lhe contar a História do mundo (agora sim com agazão)…
Outra vez a voz, o pensamento, a canção. Se bem começo a decifrar o enigma, a essência desta História – que fique claro – é o amor de um homem por uma mulher, pelo tempo que for e é. Sei que, a partir dessa alquimia, se chega a uma tal e tão sonhada Felicidade, mas nos custa tanto.
— É um bem raro, para poucos. Não sei porquê – mas, certamente há um bom motivo – isto aconteceu com a gente desde a primeira hora. E vem sendo assim, a cada dia, mais assim. E que seja assim enquanto é…
— Mágico, misterioso, único. Indizível aos olhos do mundo. Um tal Planeta Sonho onde o tempo é apenas uma convenção. Existe o existir. Ser o que se é…
VI.
É muito provável que todo esse delírio seja mesmo conseqüência de algum show do Benjor. Já fui a dezenas deles vida afora. Desde que, aos dez, onze anos, pela primeira vez alguém chamou a minha atenção para a levada diferente de um crioulo carioca, Jorge Duílio Lima de Meneses, que então atendia pelo nome artístico de Jorge Ben. Suas letras singelas – e hábeis – falam de vivências de todos nós. E são eternas…
Mas, é olímpica a sua beleza
a alegria da minha tristeza.
Bem, não vou perder tempo agora em analisar a obra benjorniana. Já me perdi do homem que virou canção. Não tenho notícias da moça que o inspirou ou ao Benjor ou a mim. Daqui a pouco dá um pane no computador e perco até esse devaneio em forma de crônica.
VII.
No fundo, no fundo, quero dizer que sempre estamos à espera de algo, de uma emoção, um novo emprego, um projeto que nos entusiasme, uma causa nobre, um amanhã que nos reinvente…
Como dizem a canção, o poeta e a voz, a espera é difícil. Mas, o melhor é esperar cantando. Ou sonhando. Inicialmente, a letra dizia ‘sambando’. Sei que os tempos são confusos, os sentimentos arredios. Mas, creiam, a esperança se renova a cada sorriso…
VIII.
De volta à vida. À saída do espetáculo, ouvi ‘o homem que virou canção’ dizer para alguém que não estava lá…
— Eu gostaria de apostar na gente. E você? Eu vou com você. Preferiria que fosse inteiro. Mas, também posso ser metade…
Como ninguém respondeu, o próprio completou:
— Um beijo, Zazueira. Te espero – e quero – pelo tempo que for. Mas, não demora…
E se perdeu no escuro do estacionamento. Caminhou, passo a passo, com o secreto prazer de quem está no controle e escreve corajosamente a própria história. Com a moça ou sem. Não tive dúvidas. Ele sempre saberá enfeitar a vida com uma alegre trilha sonora…
Assim é Ben…
Ou eu ou você. Que sejamos todos…
Nota do Autor: Essa crônica foi descaramente baseado na música Zazueira que Benjor fez e Wilson Simonal consagrou antes da explosão de País Tropical, meados dos anos 60. Baseou-se também no monólogo de Pedro Cardoso, Alto Falante, que narra a história de um homem que tem o hábito de falar consigo mesmo. De tanto falar sozinho, não sabe se ele é ele ou a pessoa com quem fala e discute a vida.