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A voz, o mito, a lenda

O século acabou. Se precisávamos de um sinal concreto de que chegou ao fim um belo ciclo da humanidade, a morte do cantor Frank Sinatra não deixa mais dúvidas. Já estamos com um pé fincado no século XXI. Convenhamos. O mundo não será mais o mesmo sem o fascinante The Voice. De pronto, achei um exagero do apresentador de TV que, visivelmente contristado, iniciou seu programa de fim-de-noite, com a notícia do passamento do mais importante cantor popular deste século. Firmei questão no exagero. Mas, não deixei de pensar na frase. E certo que, com Sinatra, desaparece todo um jeito romântico e charmosamente cafajeste de ser.

A bem da verdade, de algum tempo para cá, já havia notado que o Planeta azulado já não é mais o mesmo. Anda pouco afeito às sutilezas do coração. Endureceu e, globalizado demais, perdeu a ternura e muito de seus priscos encantos. O infarto parece iminente. Mesmo não estando na casa dos 50/60 (que é verdadeiramente o pessoal que viveu o jeito Sinatra de ser) entendi desde os tenros anos que, mais do que suas canções (primorosas quase sempre), Francis Albert Sinatra foi uma das mais representativas influências comportamentais durante duas décadas. Era o inveterado conquistador, sempre envolvido com belas mulheres (em especial por Ava Gardner), de elegância despojada (ternos de corte perfeito e o indefectível chapéu) que os rapazes de então gostavam de imitar. A vida no pós-guerra (até meados dos anos 60) era assim, digamos, mais previsível, fácil de entender ao senso do cidadão comum.

Para tudo, havia um preço. Um preço justo, diga-se. Até entre os gangsters existia um código de ética. Nunca soube de um mafioso pianista, por exemplo. As pessoas se diziam de boa índole. Não eram de todo má, como se dizia à época. Respeito e honra se distinguiam como palavras de ordem. Associo as canções e o swing de Sinatra à modesta São Paulo dos anos 50. Um cenário lúdico e inesquecível aos meus olhos de garoto: ruas de paralelepípedos ou ainda terra batida, bonde camarão, namoros furtivos no escurinho do cinema, homens engravatados e de chapéu, a rivalidade eleitoral entre Jânio e Adhemar, o início da indústria automobilística, as fábricas de tecidos, a concha acústica do Pacaembú, o radinho Speek, as conversas de fim-de-tarde na calçada, os amigos do peito, a esperança e o sonho de construir uma vida melhor, com nosso suor e trabalho. Lembro que éramos pobres. Mas, não nos faltava o pão de cada dia, o abrigo de uma casa (por menor que fosse) e alguma roupa limpa para vestir, ainda que desbotada e com algum remendo.

O ser humano não vivia assim tão aviltado pelas chagas da miséria que hoje se vê pelas ruas, sob os viadutos, nas favelas e mocambos… Também, registre-se, não precisávamos de tanta tralha. Os valores mudaram. O tal progresso não trouxe a felicidade que almejávamos. Fez dos ricos mais ricos. O celular virou moda. Mas, as pessoas se encontram cada vez menos. Nossas prioridades se embaralharam. Não é difícil ver uma pessoa comprando microondas sem ter o que comer em casa. Temos, via TV a cabo, uma janela para o mundo e sequer conversamos com quem mora ao lado. A cada esquina, a dura realidade de nossas crianças estampa um futuro de desesperança e miséria. Quanto aos nossos políticos e governantes, bem!, aí é um caso à parte. Ele se profissionalizaram, denominam-se neoliberais e só nos reconhecem em períodos pré-eleitorais. Pioraram consideravelmente. Mas, não abrem mão do folclore e de se anunciarem acima do bem e do mal. Conta-se que, em certa ocasião, o doutor Adhemar de Barros entusiasmou-se em meio a um de seus memoráveis discursos. Desabotoou o jaquetão e, apontando para os bolsos, lascou solene e convicto: Nesses bolsos nunca entrou um dinheiro desonesto… Lá do fundo da multidão, ouviu-se a voz de um gaiato rebate: — Roupa nova, hein, doutor.

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