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Bixiga

Nos anos 50, o menino do Cambuci ouvia falar do Bixiga como um reino encantado. Lá as coisas tinham nomes curiosos (Morro do Piolho), criativos (Cordão Escola de Samba Vai-Vai), poéticos (Sereno Futebol Clube). No morro do Piolho, morava o Charutinho, personagem que Adoniran Barbosa interpretava na Rádio Record – e virou até marchinha de carnaval. O samba da Vai-Vai, diziam, era mais cadenciado que o dos batuqueiros Lavapés e Império do Cambuci juntos. Os bambas do pedaço não gostavam de ouvir tamanha desfeita, mas não discordavam. O Sereno era um time de boêmios – aqueles rapazes mágicos que trocavam a noite pelo dia e bebiam e cantavam e se derramavam em amores impossíveis. Melhor que isso: era imbatível, estava há 50 jogos sem perder e um dos craques era um famoso cantor de rádio chamado Agostinho dos Santos.

Já no fim da década seguinte, o adolescente ouvia o pai dizer que, no Bixiga, comia-se “a melhor perna de cabrito com brócolis do Planeta”.

— Um pedaço da Itália no Brasil.

O pai sempre foi um oriundi exagerado.

Quando gostava de algo, era assim mesmo: “o melhor do Planeta”.

II.

Eis que “o mais famoso musical do mundo” adivinhem aonde aportou, lá pelo início dos anos 70? No Bixiga, lógico. Foi a peça Hair que impregnava a juventude da filosofia “paz e amor”. Haja amor. Haja escândalos. Os atores apareciam nus em cena. Todos. Mas, o agora rapaz nem reparou no simbolismo da montagem. Só tinha olhos para uma garota morena que, depois veio saber, atendia pelo nome de Sônia Braga.

Vivíamos a espera da Era de Aquarius.

Por isso, o antigo teatro da rua 13 de Maio ganhou nova denominação. Teatro Aquarius. Nesta mesma platéia, tempos depois, o estudante de jornalismo da Universidade de São Paulo assistiu à peça Brasileiro, Profissão Esperança, com Paulo Gracindo e Clara Nunes. Foi um sábado, outubro de 1975, no mesmo dia em que Vladimir Herzog morreu assassinado nos porões do DOI-CODI. Os artistas encerraram o espetáculo – e deram a notícia em primeira mão para a platéia. Muitos choraram. Todos reverenciaram a memória do jornalista que durante dois meses foi seu professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.

III.

Essas cenas me vieram à mente desde que Amanda, Érika, Luciana e Daniel me convidaram para ser orientador do livro-reportagem Bela Vista. Um Olhar Sobre o Bixiga em junho passado. Como explicar a esses jovens jornalistas o caminho das pedras que leva até o Bixiga? Até porque, durante um bom tempo, os paulistanos sabiam de cor que todos os caminhos da diversão, do entretenimento, da cultura, da tradição levavam ao Bixiga…

IV.

Há quantas anda hoje esse bairro diante dos desafios da metrópole em pleno século XXI?

Três meses depois, ao ler as reportagens escritas pelos estudantes, cheguei – chegamos? – a conclusão que o Bixiga resiste bravamente – e, ao menos, na imaginação de seus moradores e/ou convivas continua sendo um reino independente, único e encantado.

Um pedaço de São Paulo menos cinza, onde o sol bate e se inclina. A reverenciar sonhos e memória. Mas, até quando?

V.

Hoje foi a banca examinadora do grupo – pois, o livro representa o Trabalho de Conclusão de Curso e todos estavam emocionados: os estudantes, familiares, amigos e inclusive os próprios examinadores, os experientes jornalistas Geraldo Nunes e Jorge Tarquini. De alguma forma, eles também têm algo em comum com o bairro e uma áurea diferente envolveu a sala de aula onde aconteceu a sessão.

Difícil explicar. Não vou sequer tentar.

Digo apenas que, entre elogios e críticas, foram aprovados com nota 9,5 – o que deixou a todos felizes e satisfeitos. Precisei sair rapidamente porque tinha outra banca à minha espera. Sou capaz de apostar que a garotada foi comemorar o fim do curso e a boa nota numa das cantinas do Bixiga.

Quem sabe não incluem a história desta noite em um próximo livro?