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Na ponta da faca

O pai era uma figuraça.

Até o fim da vida – morreu em 99, aos 82 anos – teve lá suas manias; por vezes, indecifráveis aos meus olhos de filho. Outras, porém, as cultivo como relíquias – uma vã tentativa de prender o tempo no casulo da minha saudade.

Copio descaradamente o pai no hábito de aparar o bigode e deixá-lo mais fino, por exemplo. Nunca entendi, porém, o mão aberta que o pai divertia-se em ser. Às vezes, ficava nítido que o estavam passando para trás em alguma negociação.

E ele nem aí.

“Não vou ficar mais rico ou menos pobre por isso”, comentava.

Talvez a mais antiga das manias do Velho Aldo que me recordo era a de terminar a noite assistindo a um telejornal, quase interagindo com os apresentadores. Não era coisa recente, não. Começou lá nos antigamente – década de 50 – quando a TV Tupi encerrava a programação com uma edição de o Diário de S. Paulo na TV, isto por volta das 22 horas. Para o menino que fui, significava alta madrugada.

Carlos Spera, José Carlos de Moraes e Maurício Loureiro Gama – que eu achava parecido com o pai – comandavam o jornal, bem diferente dos atuais. Poucas imagens externas, quase todas vindas de agências internacionais, e muita falação dos três pioneiros do jornalismo televisivo.

À essa época, para mim, televisão era um bom lugar para se ver os seriados de mocinhos e bandidos. Os primeiros venciam após surrar magnificamente os oponentes. Lembro especialmente dos brasileiros Falcão Negro e Capitão Sete e dos importados Roy Roger e Rintintin. Queria tanto conhecê-los em carne e osso. Mas eram seres que habitavam os confins da TV Invictus, entre um tubo gigante e válvulas miraculosas.

Mesmo assim, gostava de acompanhá-lo na árdua tarefa diária. Ele discutia, em voz alta e firmemente, os assuntos da noite com os jornalistas e eu… Bem, eu ficava à espera dos meus nacos de queijo. Preciso lhes informar de outro hábito do pai. Sempre trazia um pedaço grande de queijo ‘duro’, cortava em cubos e, em meios aos debates, os devorava na ponta de uma pequena faca.

Certa noite, estávamos lá a cumprir o nosso sacrossanto ritual. Quando ouvimos um estrondo assustador como se arrombassem a porta da cozinha. A Branquinha, uma cadela que tínhamos, se pôs a latir no quintal. Intuímos a cena. Eram ladroões. Foram segundos de apreensão. Logo a mãe e minhas irmãs estavam, com suas camisolas impecáveis, na ala. Todos com o coração na mão.

O pai também aparentava um semblante aparvalhado. Mas, creio, não teve outra alternativa. Empunhou a faquinha – a tal do queijo, pouco maior que um canivete –e rumou para o imprevisível. Enfrentaria os meliantes…

… se meliantes houvesse.

— Caspita!!! Caiu tudo aqui…

Corremos para a cozinha. Vimos, então, em cacos, uma leva de uns 20 azulejos que a umidade descolou da parede e os projetou ruidosamente ao chão.

O velho casario, onde morávamos na Muniz de Souza, já não era o mesmo.

Pois é.

Foi a primeira e única vez que vi um super-herói de perto…

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