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Noite de terror solitário, na Redação *

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Foto: reprodução Instituto Vladimir Herzog

Por Orlando Barrozo

Era uma noite comum de plantão: 25 de outubro de 1975. O ano não tinha sido dos mais apreciáveis. Oito meses antes, eu sofrera um acidente de carro que me deixou, literalmente, com a perna bamba por um bom tempo. Em abril, a demissão dos professores na ECA, a disputa pela direção do Centro Acadêmico Lupe Cotrim, depois a greve, o medo das prisões que se tornavam comuns…

Considerando tudo isso, aquela noite de sábado até que era tranquila. Ou quase. Na época, tínhamos na Redação de O Globo em São Paulo uma escala de plantões noturnos nos fins de semana. O escalado entrava às 15h e estendia o expediente até por volta de meia-noite, quando fechava no Rio a edição de domingo. Naquele dia, era meu turno. Sozinho, matava o tempo lendo os jornais do dia, e com especial curiosidade os cadernos de cultura, principalmente o Divirta-se do Jornal da Tarde e o Caderno B do Jornal do Brasil. Política, via mais por obrigação, até porque nas redações ainda vigorava a censura (externa ou interna mesmo), que o dono do jornal, um tal de Roberto Marinho, era “assim c’os homi”.

Tive um colega que, em plantões como aquele, ficava ligando para as delegacias em busca de notícias. “Tem algum presunto hoje aí?”, perguntava ele ao delegado da hora. Quase sempre tinha…

Eu, de minha parte, nem gostava de presunto. Mas lá pelas 22h30 eis que toca o telefone e uma voz soando irritada me passa as ordens: “Anota aí, garoto, essa notícia tem que entrar sem falta no jornal de amanhã, OK?”

Era o Ademar, figura estranha, jeito de milico e de bicheiro, que de vez em quando vinha à Redação mas ninguém queria muito papo com ele. Era o setorista do 2º Exército, o jornalista (epa!!!) encarregado de transmitir aquilo que ao governo militar interessava divulgar.

Não o conhecia direito, mas sabia que seus textos tinham que ser publicados na íntegra, sem tirar nem por sequer uma vírgula. “Pois não, Ademar, pode falar”, era a única frase que me cabia dizer, ainda que a voz traísse a paúra do momento.

E ele não perdeu tempo: “O Comando do 2º Exército informa que o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se na tarde de hoje, nas dependências do DOI-CODI. O jornalista havia comparecido para depor às 9h da manhã e foi encontrado já morto por volta das 17h”.

Até pensei em fazê-lo, mas o choque (e o pânico) e impediu de perguntar por que, se o “suicídio” ocorrera à tarde, eles só estavam fazendo o comunicado tarde da noite. E, se era um depoimento, como é que o mantiveram lá o dia inteiro? Naquelas circunstâncias, talvez não fosse mesmo uma boa ideia fazer perguntas.

Fiquei ao mesmo tempo assustado (afinal, Herzog era meu professor na ECA) e agoniado para enviar logo a notícia ao pessoal do Rio. Nos minutos que transcorreram entre repassar o texto datilografado, entregá-lo ao operador de telex – sim, o fax só entrou bem depois em nossas vidas – e confirmar se o Rio havia recebido, foi passando em minha cabeça um filme – ou melhor, uma sequência de flashes.

Vlado, confesso, não estava entre meus professores preferidos. Como já trabalhava em reportagem de jornal, e morando longe, faltei a várias aulas suas e não me recordo de algum colega me ter dito que perdi muita coisa.

Também não sabia de seu envolvimento político, tão discreto era o cara. E, claro, não fazia a menor ideia de que ele havia sido intimado a depor naquele sábado. Mas já tínhamos relatos de professores, estudantes e profissionais de áreas diversas que haviam sido presos, torturados etc., inclusive colegas da própria ECA.

Estava na cara que o tal suicídio havia sido armado. No domingo 26, minha prioridade era procurar colegas que soubessem de detalhes. Estava de folga, mas logo cedo saí procurando os jornais do dia para ver a “cobertura” do suicídio. Em vão, claro.

Quando o 2º Exército decidiu soltar a nota farsesca, todos os jornais já haviam fechado; e os militares certamente sabiam disso, daí por que retardaram a divulgação. Talvez esperassem que no domingo a coisa esfriasse.

Felizmente para o país e a democracia, estavam errados. No domingo, amigos e colegas se reuniram no Sindicato dos Jornalistas, então presidido por Audálio Dantas. E dali para a sede da Cúria Metropolitana, onde o inesquecível D. Paulo Evaristo Arns tomaria a liderança das manifestações, em parceria ecumênica com o Rabino Henry Sobel.

À tarde, fui até a Redação só para checar se a “minha” notícia havia sido aproveitada. Constatei que O Globo foi o único jornal que publicou a nota no domingo. Uma pequena nota escondida numa página qualquer, mas que ainda assim podia ser lida na íntegra.

Não posso dizer que fiquei feliz de ver o texto publicado antes de todos os concorrentes. Não havia como estar feliz naquele domingo. Mas, pela primeira vez na carreira que começara mais de três anos antes (6 de abril, 1972), senti um gostinho muito caro a todo jornalista: o de estar no lugar certo na hora certa.

Orlando Barrozo

* O amigo Orlando é meu contemporâneo da turma de 1972 da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Estávamos no terceiro ano do curso de Jornalismo – e Herzog era nosso professor de Jornalismo Televisionado. Tocante seu depoimento – e, mais do que isso, maior sua relevância nesta semana quando o país decide qual o rumo que deseja dar à tenra democracia.

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1 Response
  • Arlene Sequeira Martins
    25, outubro, 2022

    Muitos que não viveram essa época, devem ler para saber o que é viver em um país não DEMOCRÁTICO!

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