"Brasil, mostra tua cara…" (Cazuza)
01. Agora que o mundo parece ruir sobre sua cabeça, justamente agora, gostaria de saber exatamente em que momento decidiu aceitar a proposta do padrinho para cair na esparrela da vida pública. Logo ele que sempre prezou a rotina bem demarcada desses pacatos cidadãos, com algumas posses e quase nenhum sonho. De onde veio e aonde chegou antes de embarcar nessa furada, foi uma trajetória e tanto. Era um bem-sucedido executivo das finanças de uma empresa sólida, com mulher, um casal de filhos, pós-graduação em Londres e outras conquistas pouco comuns à maioria dos brasileiros. Para que querer mais?
02. É bem verdade que sempre achou que pudesse. Que devesse. Que fosse possível mais. Desde pequeno parecia ouvir uma voz, aquela voz interior, a lhe garantir que era um predestinado. Que, mais cedo ou mais tarde, haveria uma brecha no cosmo para que pudesse mostrar todas as suas potencialidades. Nem precisava consultar mapas astrológicos para saber o que estava escrito nas estrelas. Questão de tempo! De alguma forma, sempre soube disso.
03. Creditou à sua absurda timidez o fato de permanecer anônimo ainda na virada dos 50. Por isso, não se surpreendeu quando o amigo e padrinho o convidou para ser secretário de Estado, com direito a carro, motorista, ser tratado de doutor e outras coisas mais. Puxa, não pensou que era assim… Todos ali, naquela roda, o consideravam brilhante: discurso articulado, elegante, educado, sempre disposto a ouvir e sem fazer perguntas inconvenientes. Percebeu que se fizesse e assinasse tudo o que lhe mandavam logo estaria mandando fazer (e assinar) o que lhe pediam agora…
04. Em casa — até então um doce lar — os familiares achavam ótima a nova faceta do pai-herói, marido corretíssimo. Sequer reclamaram que o salário do chefe da casa baixou consideravelmente. Pensando bem, nem poderiam. Até porque o padrão de vida se elevou às alturas. Ah! esses novos amigos são tão generosos…
05. O homem era mesmo um prodígio. Na primeira oportunidade virou alcaide de uma cidade que só não era maravilhosa porque não havia mar, montanha e Cristo Redentor de braços abertos para a baía. Quando assumiu a função, em meio a sorrisos transgênicos, fura-filas e inefáveis projetos sociais, não entendeu porque tantos amigos do padrinho ao redor, porque tantos palpites, tanta briguinha boba para administrar repartições públicas de bairros, cemitérios, PAS etc…
06. Durou pouco a fase do vento a favor. Falando francamente, não contava que tudo fosse assim tão efêmero. De repente, não conseguia se fazer ouvir na reunião do secretariado. Parece que falavam um idioma diferente. Nunca entendeu aquela linguagem de sinais cifrados. Quando pensou em impor sua vontade, aí que a coisa radicalizou… Tomou bordoada de todos os lados. Até da mulher e do próprio padrinho. Quis ir em outra direção, mas seus gestos não obedeciam. Seus movimentos não lhe pertenciam. Estavam monitorados por um poderoso fio que escapava de uma grossa teia de interesses que mal sabia aonde iam dar.
07. Caiu em si. Nesse tempo, transformara-se num fantoche. Ingenuidade e ambição, que bobagem! Agora, era um homem só — e absolutamente destruído. Se tirou alguma vantagem, pode ser. Nada, porém, que valha a dignidade que perdeu…