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A Taça do Mundo é nossa *

Juro que não é tão simples entender.

Para um garoto de sete anos, que está no primeiro ano do Grupo Escolar Oscar Thompson, é preciso dar o devido desconto. Gosto muito do pai, mas às vezes ele me confunde.

Primeiro, ele me garantiu que na vida a gente pode tudo. Pode mudar de religião, de partido político, de nacionalidade, de marca de carro, de gosto, de opinião; até de mulher, que é bom e saudável.

Essa parte a mãe não gostou – e até gritou lá da cozinha:

— Aldoooo!!!

O pai sorriu daquele jeito dele, meio malandro; deu uma piscadinha para mim e concluiu:

— A gente só não pode virar bandeira. Trocar de time de futebol, nunca.

O pai é palmeirense – palestrino, como gosta de dizer. E eu também, né?.

Para ele, o centro-avante Mazzola é o melhor jogador do mundo.

— Chuta tudo: tiro de meta, falta, pênalti… Bate escanteio e cabeceia.

Puxa vida, nem o Flash Gordon faz tanta coisa ao mesmo tempo – e olha que o Flash Gordon é o herói no seriado de domingo no cinema.

II.

Mas, se o pai falou…

Está certo que o pai, às vezes, quase sempre, exagera.

Mas, pai é pai.

Por isso, mesmo que fiquei confuso.

Agora, ele deu de torcer por um time chamado “Seleção”.

E não é só ele, não.

Todo mundo que eu conheço torce para essa tal de seleção.

Será que vão acabar os palmeirenses, corintianos, são-paulinos, portugueses?

Que sem graça…

III.

Sem graça, sim.

A grande diversão dos garotos da rua Muniz de Souza é o futebol. Jogamos bola, da manhã até à noite. Na calçadas, no campinho, no barrancão do Jardim da Aclimação. Com bolas de meia, de borracha, de capotão. Bobinho, controle, gol a gol, chutar-rebater e driblar, rachão. Não importa hora, local, tipo de jogo – queremos mesmo jogar futebol.

Entre um jogo e outro, uma brincadeira e outra, nosso assunto é… futebol. E aí a grande diversão é provocar o outro. Dizer que meu time era melhor do que o do outro. Que o Mazzola é melhor que o Luizinho, que o Luizinho é melhor que o Canhoteiro e por aí temos assunto sem fim.

Agora se todos torcerem por um time só será um tédio. Chatíssimo.

Não haverá razão para bate-bocas e pancadarias que, às vezes, tal e qual o pai, eu também exagero.

IV.

Por falar em pai. Ele bem que tentou me explicar.

— A seleção representa a Pátria.

Não ajudou muito.

Explico.

Ainda domingo passado o Santos do Cambuci jogou contra um time chamado Pátria. Foi uma partida difícil, mas o Santos ganhou e não vi nenhum desses jogadores em campo.

— Não, não. A seleção é formada pelos melhores jogadores de cada clube e representa o nosso país, o Brasil, num torneio que se disputa de quatro em quatro anos e se chama Copa do Mundo. Participam 16 países e quem ganha fica com o título de melhor do mundo, entendeu?

Balanço a cabeça para mostrar para o pai que não sou tão bocó assim. Digo que tem lá suas vantagens torcer por uma equipe com um ataque formado por Cláudio, Luizinho, Mazzola, Ênio Andrade e Canhoteiro.

O pai sorri.

— Melhor ainda. Pois a seleção reúne jogadores do Rio de Janeiro também. Didi, Joel, Vavá, Dida e um tal de Garrincha.

— Dá para fazer um bom time, né, pai?

— O melhor, filho, o melhor…

V.

Bastou começar os jogos para ver que o pai tinha razão. A cada partida, é uma festa. Uma alegria. Todas as casas têm um rádio sintonizado no jogo – e as pessoas parecem todas irmanadas. Como se fossem da mesma família, na noite da véspera de Natal. Até as mulheres se entusiasmam como futebol.

Na escola, a professora, dona Izabel, trouxe um livrão chamado Atlas, repleto de mapas. Mostrou para nós quais são os adversários do Brasil: Áustria, Inglaterra e Rússia. Pelo tamanho deles em comparação ao nosso, achei que ganharíamos fácil dos dois primeiros e a tal da Rússia me pareceu problema.

— O futebol não tem lógica.

Foi a primeira vez que ouvi essa frase.

VI.

Não é que a professora tem razão.

O Brasil ganhou da Áustria (3×0), empatou com a minúscula Inglaterra (0x0) e derrotou a Rússia (2×0), com um baile de Garrincha, que o pai falou que era driblador, que fazia mais graças com a bola do que o Vagabundo Carlitos com a bengala.

Meu avô também tem esse apelido – Carlitos, mas não usa bengala e vive cantando ‘Luar do Sertão’.

Ah! O pai falou também de um menino que joga no Santos, chamado Pelé.

Nas conversas da escola, do bar Astória (quando vou ver o pai jogar Patrão-e-Sotto), da barbearia do Seu Atílio, até da quitanda da Dona Amélia, as pessoas estão felizes e apreensivas. Só falam na tal Copa do Mundo e se perguntam:

— Será que agora vai?

Aí lembram que em 1950, ano em que nasci, a Copa do Mundo foi disputada no Rio de Janeiro e o Brasil perdeu no último jogo para o Uruguai (2×1). Algumas ficam com os olhos vermelhos quando lembram. Outras perdem a voz. Há quem abaixe a cabeça e tente mudar de assunto.

Mais de uma vez, escutei a frase:

— O brasileiro tem complexo de vira-lata. Principalmente no futebol. Treme quando chega a hora da decisão.

Dizem que foi um jornalista chamado Nélson Rodrigues que fez essa triste comparação. Nessa hora, eu tento desconversar e lhes digo o que aprendi na escola:

— Futebol não tem lógica.

VII.

Vou ser sincero.

Queria que esse torneio – como disse o pai, “que é diferente de campeonato” – não acabasse nunca. Estou gostando da farra.

Que venham mais adversários. Venceremos todos.

Quando ganhamos do País de Gales. Um a zero, mixuruca, mixuruca. Os batuqueiros da Império do Cambuci saíram pelas ruas do Cambuci. Parecia carnaval.

Depois da goleada em cima da França (5×2), foi a nossa vez. Eu, o Betão, o Claudinho e o Bilex saímos comemorando pelas ruas. Aliás, todos comemoravam. Havia cadeiras nas ruas, formando rodas de vizinhos a beber, rir e cantar:

“A Taça do Mundo
é nossa… Com o brasileiro
não há quem possa…
Eeta, esquadrão de ouro…
É bom no samba…
É bom no couro…”

VIII.

29 de junho de 1958.

Um domingo que começou apreensivo, sob a ameaça de um novo Maracanazzo.

Terminou numa grande festa.

Brasil 5 x Suécia 2.

Pela primeira vez o Brasil era CAMPEÃO MUNDIAL DE FUTEBOL.

Às favas o tal complexo de vira-lata.

O mundo, finalmente, descobriu o Brasil, como diz o jornalista Paulo Planet Buarque, no belíssimo documentário de José Carlos Asberg que retrata essa façanha.

IX.

Não sei se vocês me entenderão.

Havia uma áurea de felicidade em toda gente.

Não houve essa comemoração programada, artificial tão comum nos dias atuais.

As pessoas apenas saíram às ruas e pulavam…

e cantavam e pulavam…

e sorriam e pulavam…

Nossa como pulavam!!!

X.

O pai era um desses felizardos.

Nem ligou que Mazzola, depois da Copa, não jogaria mais no Palmeiras; pois vendido ao Milan da Itália.

— Vamos comprar um time todo com esse dinheiro.

Para ele – e para o mundo –, o futebol tinha um novo rei:

PELÉ

e um gênio das pernas tortas:

GARRINCHA.

XI.

O menino também estava feliz.

Pela primeira vez, sentia-se um campeão.

Gosto bom, de alegria e conquista.

Tão bom que fez até uma promessa para ele mesmo.

Lembraria daqueles momentos para sempre…

… nem que passassem 50 anos e um dia.

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