Para Maria Tchilian, Greice e Serginho Gandolphi,
autores do documentário e do projeto.
Há cerca de dois anos e tanto, três alunos do oitavo semestre de jornalismo, da Unviersidade Metodista, vieram falar comigo. Preparavam o pré-projeto do seu trabalho de conclusão de curso, o esperado TCC. Queriam fazer um documentário de TV e traziam uma idéia a partir de um título genial: De Chico a Chiclet.
— É possível, professor?
Eles estavam ressabiados, pois alguns dos meus pares não viram qualquer relação entre os dois nomes. E os dois momentos da música popular brasileira.
— Como assim? – perguntei.
Na verdade, a pergunta foi só um recurso para tomar fôlego e ajeitar as idéias na cabeça. De pronto, a proposta me entusiasmou. Avisei-os que iria pensar no tema e como estruturar a tal trajetória. Todos esses aêaêaêaê do carnaval baiano não caiu do céu, de graça, nos anos 90. Tem uma história aí. Não poderia ser o orientador oficial do grupo. Nada entendo de TV – sempre fui um dinossauro do texto impresso. Mas, poderia, sim, traçar uma trajetória da música pra pular brasileira que lhes poderia ser útil.
É esta trajetória que trago até vocês.
I.
1969. Paulinho da Viola vence o último Festival de Música Popular Brasileira da TV Record com a música “Sinal Fechado”. A canção revela a distância e o reencontro de um homem e uma mulher, com uma história comum, que casualmente se cruzam no trânsito de uma grande cidade. Revela também a opressão em que vive a sociedade brasileira, o cuidado no dizer as coisas, a angústia do nada a dizer. Ou a dor de não poder dizer nada.
Esse quase samba, quase bossa, quase-quase de Paulinho dá título ao elepê de Chico Buarque de 1972 em que o cantor/compositor aparece só como intérprete de vários autores, pois suas músicas não conseguem furar o bloqueio da censura.
Assim, como Machado de Assis definiu Capitu (“Capitu é Capitu”), Chico Buarque é Chico Buarque. Neste disco, aparece como autor apenas na letra em que assina como Julinho da Adelaide.
Mais do que um codinome, Julinho da Adelaide ganha vida própria nas entrevistas e reportagens. Chico o apresenta como um típico malandro dos morros cariocas, autor de “Chame Um Ladrão”, faixa dois do lado A. Todos acreditam!
Com tal recurso, consegue driblar a censura e ver aprovada outra música que não está no disco, mas foi registrada em vinil pelo MPB4: “Jorge Maravilha”.
O refrão diz:
“Você não gosta de mim.
Mas sua filha gosta”.
É um quase rock, quase baião em que dizem Chico se referia à filha do presidente Ernesto Geisel, Luci, que adorava suas canções. Um contra-senso visto que os censores do Governo Geisel eram implacáveis com as letras do autor de “Roda Viva”.
II.
Os baianos Gil e Caetano voltam de Londres transformados. Gil flerta com o rock (“Get To Bahia”) e o existencialismo (“Oriente”). Caetano vai nas águas do experimentalismo (Araçá Azul) e da provocação andrógina em seus shows.
Em 76, lança um disco polêmico: Bicho. Propõe que todos caiam na dança mesmo em tempos obscuros.
A letra da canção “Odara” tem um apelo indiscutível:
“Deixa eu dançar
Pro meu corpo ficar odara
Minha cara
Minha cuca ficar odara
Deixe eu cantar
Que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que
se sonhara
Canto e danço que dará”
Gilberto Gil, à mesma época, conclui a trilogia de discos – Refazenda, Refavela – com Realce, em que sacramenta, luminoso e iluminado:
“Quanto mais purpurina melhor”.
Refazenda tem apego a aldeia, às origens baianas, ao sertão. Refavela fala de urbanidade e Realce cai no mundo, às favas os limites. Num show do Colégio Equipe em São Paulo é vaiado pelos componentes da Libelu (Liberdade e Luta) e outras alas das esquerdas estudantil. No show do dia seguinte, um domingo à tarde, como resposta apresenta a versão “Não, Não Chore Mais”, de Bob Marley. Ao que se tem registro, é a primeira aparição do reggae por aqui.
“Amigos presos,
amigos sumidos assim.
Eu sei… Pra nunca mais “.
III.
Também na segunda metade dos anos 70, o crítico musical, compositor e jornalista, Nélson Motta, fala que a MPB vive uma nova fase. E, a partir de então, o que vale é a ‘Música Pra Pular Brasileira’. Na esteira dessa declaração, é empresário e idealizador do grupo Frenéticas que reúne seis ex-garçonetes da primeira discoteca brasileira, chamada ‘Circo Voador’, no Rio de Janeiro. De propriedade do mesmo Nelson Motta e popularizada pela novela Dancing Days, com Antônio Fagundes e Sônia Braga.
De certo modo implanta-se, mesmo em tempos de redemocratização, a gandaia musical. E raros são os que não se divertem sacudindo o esqueleto — o que até o início dos anos 70 era quase uma heresia. Afinal, diziam, “vivemos em plena ditadura”.
IV.
Ainda nos anos 70, como música dançante e de alguma importância a vitória de “Fio Maravilha”, de Jorge Benjor, interpretada por Maria Alcina no Festival Internacional da Canção e o fenômeno “Secos e Molhados”, com a aparição de Ney Matogrosso e seus requebros censurados pela TV.
Duas pérolas anarquicas inconcebíveis para tempos tristes e ditatoriais. Mas, que agradaram a todos – e mais alguns. Coisas do Brasil…
V.
Há quem chame os anos 80 de a década perdida em termos culturais. Até o papa vira pop. A MPB, idem.
Configura-se o predomínio do rock a partir da explosão da Blitz logo no início da década. Lulu Santos (com Nélson Motta como parceiro em várias músicas), Legião, Paralamas, Titãs e Cazuza integram o primeiro time dessa geração. Que ainda tem Léo Jaime, Lobão, Marina Lima, Ira e menos cotados.
A década também fica marcada pelos grandes festivais, agora com outro formato. A celebração substitui a competição. Protestos mesmo, só quando a música acaba. Ou quando o pessoal vaia o rock bem-comportado do Kid Abelha e Herbet Viana, de olho na vocalista Paula Toller, manda a ‘galera’ ir pra casa aprender a tocar guitarra. Holywood Rock, Rock in Rio e assemelhados são sempre realizados em estádios com ampla capacidade de lotação.
Importante destacar que, nesse período, quem se consagra como grande nome de vendas é a paulistana Rita Lee. Só que, com um som de letras insinuantes e bem-humoradas. As melodias simples, muitas vezes, trazem o andamento das velhas marchinhas carnavalescas. “Chega Mais”, “Lança Perfume” e todas as outras que ainda hoje as rádios não se cansam de tocar.
No entanto, é a baianidade ou a nordestinidade que põe o esqueleto para requebrar. E para isso talvez seja importante voltarmos aos anos 70.
VI.
Fiz essa meia volta, na verdade, só para dar liga ao texto. Vocês me entenderão, acreditem.
Meus caros, “é ferro na boneca, é no gogó, neném”.
Com essa belezura de filosofia aportaram no sulmaravilha, em fins dos anos 60, três baianos e uma carioca, mas baiana de alma, coração e escambo.
À época, era um terror defrontar-se com Moraes Moreira, Paulinho Boca-de-Cantor, Baby Consuelo e o compositor Moraes, ainda anônimos cantantes das quebradas paulistanas. Eram uma versão tupiniquim da geração hippye, com exageros e desmantelos. Dos cabelos às roupas. Das apresentações quase amadoras à música estridente.
Mas, em termos de balanço e inventividade, os Novos Baianos revelaram-se imbatível a partir do disco Acabou Chorare. Neste trabalho, já com a participação de Pepeu Gomes, Dadi e outros, misturaram chorinho, rock, samba e o que mais pintasse. Foi um estrondo – uma tijolada nos vitrais das obviedades e do conservadorismo.
O sucesso dos Novos Baianos inflou o ego de seus participantes que logo se lançaram em carreira solo. Moraes Moreira foi o primeiro a sair. Baby e Pepeu logo seguiram o mesmo destino, depois de serem proibidos de entrar na Disneylândia para não fazer concorrência ao Mickey e ao Pato Donald. Paulinho Boca de Cantor, mais reticente, esperou um tempo, mas também caiu na estrada numa carreira mais modesta. O baixista Dadi foi compor junto com o tecladista Mu e o Armandinho o grupo A Cor do Som.
O guitarrista Armandinho é filho do lendário, fundador do primeiro trio elétrico: O Trio Elétrico de Dodô e Osmar. O disco Muitos Carnavais, de Caetano Veloso (que inclui a agitada “Chuva, Suor e Cerveja”) e hits como “Festa do Interior” (gravada por Gal Costa) e “Pombo Correio”, ambas de Moraes, “Palco” de Gilberto Gil com A Cor do Som, “Masculino Feminino” de Pepeu e “Menino do Rio” (Caetano Veloso) e “Telúrica” com Baby Consuelo e prepararam terreno para o resgate do trio elétrico e do carnaval baiano.
Assim os anos 80 se encerram com a alta do carnaval baiano. E o surgimento dos precursores do axé: Luiz Caldas, Cid Guerreiro e o grupo Asa de Águia.
VII.
A nova década desponta sob a égide do Governo Collor. Da música sertaneja (em 89, Xitãozinho e Chororó realizaram o primeiro show num casa considerada tipicamente classe média em São Paulo, o Olympia) e da lambada (creiam, mas é verdade e dou fé). O principal nome do dito gênero, igualmente dançante, vocês devem lembrar, era o qualquer-coisa Beto Barbosa. Não torçam o nariz, mas a garotada deu de gostar do molejo do cidadão e a lambada, por mais chinfrim que pareça, foi importante para implodir todo e qualquer preconceito quanto aos ritmos do norte e nordeste.
Em 92, a baiana Daniela Mercoury vem a São Paulo caitituar seu primeiro disco e a praga do axé-music se espalha por toda a cidade, estado, País. Aí, o sulmaravilha descobre que existem outras bandas, entre as quais o Chiclete Com Banana.
O resto da história… Bem. Para ser sincero, não sei contar. Mas, aposto, a garotada que me lê sabe de cor e salteado. Põe salteado nisso.
“Tira o pé do chão, galera!”