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Escova e Alicinha (íntegra)

Escova anda desconfiado desde que viu o cartaz anunciando o novo filme de Johnny Deep – Diário de um jornalista bêbado.

— É comigo isso?

Não assisti ao filme, mas fui logo tranqüilizando o amigo.

— Nada a ver, Escova. Isso é coisa de gringo.

Mesmo assim, Escova não se satisfez.

— Sei não, disse. – Todo mundo conta as pingas que eu bebo. Ninguém quer saber dos tombos que levo.

Achei aquela fala enigmática. E o amigo um tanto triste.

— O que aconteceu, cara? Algum problema?

— Todos.

“Todos” os problemas de Escova, para quem o conhece bem, se resumem a apenas um: mulher.

Desencanei.

Mas, segundos depois, a curiosidade falou mais alto.

— Qual a boa? Conta aí?

— A boa é a Alicinha, disse o amigo.

— A Alicinha!!!

Fiz uma expressão de espanto mesmo sem saber quem era a moça.

Sei, pela vivência nos bares e botecos da vida, que o nosso Dom Juan das Quebradas do Sacomã não resistiria a deixa e me contaria o que estava acontecendo.

Dito e feito.

— Pois é. Levei meses cantando a jovem senhora. Investi olhares, bom dia e boa tarde cheios de intenções, conversas meigas… Quase virei corintiano o dia que a vi com aquela camisa grená que tem a estampa de São Jorge… Tudo para chegar aos finalmentes e…

Cabe aqui um oportuno esclarecimento ao distinto leitor.

Alicinha era uma jovem senhora que morava no mesmo prédio que Escova.

Casada e mãe de uma pimpolha de dois anos, pouco mais, pouco menos. A bem da verdade, o amigo nem se ligava na moça até que veio a fase pós gravidez. Ela tomou formas mais fartas, mais apetitosas aos olhares do velho lobo das redações.

Escova me garantiu que as mechas aloiradas no cabelo e certa bandidagem no olhar foram quesitos suficientes para que os sinos da conquista repicassem naquele fim de tarde que ambos tomaram o elevador; juntos só os dois.

A partir daí, foi incontrolável segurar os instintos ‘domjuanescos’ de Escova. Ele desenvolveu toda uma estratégia para provocar encontros diários e “involuntários” – no elevador, no estacionamento, na área de lazer, onde fosse possível. Sempre tinha uma palavra amiga, um comentário esperto sobre a vida, uma citação poética que decorava especialmente para tais ocasiões.

Até que, sem que se dessem conta, já estavam próximos.

Próximos o necessário para que Escova fizesse o inevitável convite…

II.

A moça relutou na primeira investida.

Vacilou na segunda.

— Adoro conversar com você, mas não sei se seria de bom tom.

E se entregou na terceira.

— Está bem. Dia desses a gente se encontra…

— Amanhã, a gente almoça juntos, ok? Sei onde você trabalha.

Uma das características do predador Escova era exatamente essa: armar-se de todas as informações possíveis e imagináveis sobre a caça. Para não ter erro na hora do bote.

De posse da ficha de Alicinha, Escova sabia exatamente como era a rotina da moça. Esposa fiel, mãe dedicada e executiva de algum sucesso na área dos cosméticos. Tinha hábitos rotineiros. Marcava todas as reuniões para a parte da manhã, almoçava por volta do meio-dia em um restaurante ali pertinho, corria para casa, olhava a criança por volta das 16 horas estava de novo na empresa de onde saía impreterivelmente às 19 horas. Chegava às 19h30 em casa em tempo de preparar o jantar, receber o marido e curtir o resto da noite em família.

Escova juntou o lé com o cré – e apostou no horário do almoço e pós almoço. Experiente no assunto, fez os cálculos.

Qualquer desculpa, por mais esfarrapada que fosse, convenceria a empregada que não poderia voltar para casa naquele horário – e assim, um pelo outro, ambos teriam em torno de quatro horas para serem felizes.

Alicinha riu da investida do gabiru.

Já havia intuído que estava sendo cantada – e descaradamente. Mas, topou o jogo jogado. Até porque faz bem para o ego de qualquer mulher.

Nunca imaginou que as coisas passariam desses limites.

Mas, agora estava diante de um impasse.

Lembrou os tempos idos, de solteira, quando arrebentava os corações masculinos com essas brincadeiras de quero-não-quero.

— O quanto me diverti com aqueles panacas?

Um a mais, um a menos, não vai mudar nada.

Escova era um cara mais vivido.

Fazia o estilo do romântico à moda antiga.

Um tanto cafa, outro tanto safo.

Seria divertido dar um vaivém nele também…

Nem percebeu.

Fez carinha da santinha do pau oco e, entre tímida e sedutora, disse:

— Eu topo!

III.

Diz a canção:

“A gente nunca sabe bem o que é que quer uma mulher”.

Há homens tolos que ainda duvidam da correção dos versos de Caetano Veloso em “Pecado Original”.

As mulheres, no entanto…

Bem, as mulheres, minimamente normais, têm plena convicção de que, em determinados momentos, não sabem o que fazem, o porquê fazem e quais as conseqüências do que fazem.

Aliás, este é o grande barato de ser mulher.

Na manhã do dito-cujo encontro com Escova, ela acordou assim.

Despediu-se do marido no café da manhã com um sorriso, um longo beijo e a certeza de que aquela ‘brincadeira’ de almoço já havia ido longe demais.

Inventaria uma desculpa – e não iria.

Minutos depois, ao deixar a filha com a tia da vã que a levaria para a escola, deixou recomendações claras para trazê-la no horário e certificar-se se a babá a levaria para dentro. Estava “entupida” de trabalho – e talvez não viesse para casa antes do anoitecer.

Estranhou a mentira que acabara de inventar, mas aplaudiu, interiormente, a naturalidade com que ‘fechou’ o assunto.

No trabalho, por mais de uma vez, surpreendeu-se conferindo o visor do celular para saber se havia alguma mensagem.

Do Escova, claro.

Nesse joguinho de vou-não-vou, sequer notou a manhã passar.

Quando deu por si, já estava dividindo uma mesa de canto no restaurante, com aquele pilantra que mal conhecia, mas bem sabia das suas intenções.

O lugar era sem charme. Seguro, no entanto.

Por certo não haveria nenhum conhecido de ambos nas redondezas.

Incrível reconhecer. Sentia-se segura, levemente inconsequente, e com a convicção de que tudo não passaria de almoço, sem maiores consequências.

— Um dedinho mais de vinho, por favor. Mas só um pouquinho.

Nunca saberemos se foi o tal “dedinho de vinho” ou outro fator qualquer. O fato é que Alicinha foi gostando do jogo jogado. Quanto mais Escova, o predador, aproximava sua cadeira da dela e esticava o braço para roçar seu ombro como se fosse íntimo, mais a moça ia perdendo a noção do perigo.

Tanto que resolveu atiçar os humores e desejos do velho Dom Juan das Quebradas dos mundaréus.

Sutil como um elefante em uma loja de louça, ela provocou:

— Pensei que fossemos a um lugar mais tranquilo, um cantinho onde pudéssemos ficar mais à vontade.

Queria vê-lo sem jeito.

Escova era experiente no assunto:

— Por isso, não. A duas quadras daqui existe um flat ótimo. Deixei para tomarmos lá o licor. Eu nunca deixou de satisfazer as vontades de uma mulher, ainda mais linda como você…

Ele continuou o xaveco. Ela nada mais escutava, envolta na aflição de embarcara numa canoa furada, e lhe pareceu ali – não tinha volta.

E agora?

Olha o tamanho da enrascada que entrara…

Diz a canção:

“A gente nunca sabe bem o que é que quer uma mulher”.

Há homens tolos que ainda duvidam da correção dos versos de Caetano Veloso em “Pecado Original”.

As mulheres, no entanto…

Bem, as mulheres, minimamente normais, têm plena convicção de que, em determinados momentos, não sabem o que fazem, o porquê fazem e quais as conseqüências do que fazem.

Aliás, este é o grande barato de ser mulher.

Na manhã do dito-cujo encontro com Escova, ela acordou assim.

Despediu-se do marido no café da manhã com um sorriso, um longo beijo e a certeza de que aquela ‘brincadeira’ de almoço já havia ido longe demais.

Inventaria uma desculpa – e não iria.

Minutos depois, ao deixar a filha com a tia da vã que a levaria para a escola, deixou recomendações claras para trazê-la no horário e certificar-se se a babá a levaria para dentro. Estava “entupida” de trabalho – e talvez não viesse para casa antes do anoitecer.

Estranhou a mentira que acabara de inventar, mas aplaudiu, interiormente, a naturalidade com que ‘fechou’ o assunto.

No trabalho, por mais de uma vez, surpreendeu-se conferindo o visor do celular para saber se havia alguma mensagem.

Do Escova, claro.

Nesse joguinho de vou-não-vou, sequer notou a manhã passar.

Quando deu por si, já estava dividindo uma mesa de canto no restaurante, com aquele pilantra que mal conhecia, mas bem sabia das suas intenções.

O lugar era sem charme. Seguro, no entanto.

Por certo não haveria nenhum conhecido de ambos nas redondezas.

Incrível reconhecer. Sentia-se segura, levemente inconsequente, e com a convicção de que tudo não passaria de almoço, sem maiores consequências.

— Um dedinho mais de vinho, por favor. Mas só um pouquinho.

Nunca saberemos se foi o tal “dedinho de vinho” ou outro fator qualquer. O fato é que Alicinha foi gostando do jogo jogado. Quanto mais Escova, o predador, aproximava sua cadeira da dela e esticava o braço para roçar seu ombro como se fosse íntimo, mais a moça ia perdendo a noção do perigo.

Tanto que resolveu atiçar os humores e desejos do velho Dom Juan das Quebradas dos mundaréus.

Sutil como um elefante em uma loja de louça, ela provocou:

— Pensei que fossemos a um lugar mais tranquilo, um cantinho onde pudéssemos ficar mais à vontade.

Queria vê-lo sem jeito.

Escova era experiente no assunto:

— Por isso, não. A duas quadras daqui existe um flat ótimo. Deixei para tomarmos lá o licor. Eu nunca deixou de satisfazer as vontades de uma mulher, ainda mais linda como você…

Ele continuou o xaveco. Ela nada mais escutava, envolta na aflição de embarcara numa canoa furada, e lhe pareceu ali – não tinha volta.

E agora?

Olha o tamanho da enrascada que entrara…

IV.

À essa altura do campeonato, o velho Escova já dava como favas contadas o inevitável abate.

Questão de minutos; meia-hora, se tanto.

Logo estariam dividindo o licor e o edredon no flat ali ao lado.

Por tudo o que já vivera na área da trampolinagem, o nosso Dom Juan estava até um bocadinho surpreso.

Fora mais fácil do que imaginara…

Pois é, meus caros, como dizem pela aí, quem vê cara etc etc etc.

Alicinha, digamos, começava a recuperar a noção das coisas e de onde estava.

Sorria mesmo assim para as bobagens melosas que Escova dizia.

Precisava ganhar tempo para escapar da armadilha que se enredara – e da qual se arrependera e queria ver-se livre o mais rápido possível.

— Como vim parar aqui, perguntava-se sem pretensão de responder, só de escapar.

Estava nesse lusco-fusco, sem ação alguma, sem solução aparente, quando ouviu um choro de criança.

Um buábuábuá mais do que conhecido.

De imediato, se lembrou da filha querida.

Será que…

Não.

Não era tão trágico assim.

A menina devia estar em casa com a babá – e talvez se desse conta da ausência da mãe. Mas, não tinha certeza.

Atrás da mesa dele, um jovem casal relutava em soltar a criança, presa ao cadeirão. E cansada de estar ali, degustando pãezinhos, batatinhas e afins, enquanto os pais caíam de boca em soberba sobremesa de sorvete.

— Não pode. Não pode, dizia mãe à criança. – Você resfria fácil, fácil.

Mas, essa constatação não tranqüilizou Alicinha.

Que agora se achava a mãe mais desnaturada do mundo.

Onde já se viu? Trocar a carinha angelical de Mirna (a filha, de ano e tanto) por esse estropício? Onde estava com a cabeça…

V.

Alicinha agora brigava em duas frentes:

1 – conter os libidinosos avanços de Escova e…

2 – segurar o choro de arrependimento.

Que esparrela!

Escova se achando.

O arrependimento.

E a criança que, livre do cadeirão se pôs a correr entre as mesas do restaurante, a comemorar a súbita liberdade em sonoro idioma próprio.

— Dedéééééé. Dedéééééé…

Escova percebeu que algo acontecia. Mas, não intuiu o tamanho da encrenca.

Os músculos de Alicinha se enrijeceram. Perdera a fome, e a coragem.

E a menina – tão parecida com a sua Mirna – a lhe cobrar uma atitude:

— Dedéééééé. Dedéééééé…

— Dedéééééé. Dedéééééé…

— Dedéééééé. Dedéééééé…

As pessoas às mesas riam da farra da garota.

Os pais continuavam a lida de derrubar a taça de sorvete, indiferentes às peripécias da pimpolha.

Escova, de repente, silenciara. Pressentira que a bola não estava mais com ele.

Só Alicinha entendia o drama que estava vivendo.

Um drama que não resistiria a mais um segundo sequer.

Entre um e outro “dedéééééé, dedéééééé” tomou coragem e disse o que tinha de dizer:

— Desculpe, Escova, mas o licor fica para a próxima [se houver próxima, pensou.]

Estou morrendo de saudades da minha filha.

Levantou-se, e foi embora.

Acenou para a garotinha:

— Tchau – e obrigado pela dica.

Como resposta, obteve um sonoro…

— Dedéééééé. Dedéééééé…

Desconsolado, não coube alternativa ao nosso herói, se não aquela de sempre: entornar o que restou da garrafa de vinho, pagar a conta e afogar o vazio que lhe ia à alma no boteco de sempre. Com os amigos de sempre. Que ouviam solidários as lamúrias de sempre [ainda que debochadamente entendiam a sua dor]. Além do que, sempre havia uma alma generosa para lhe pagar a saideira.

Só não se conformou com o cartaz afixado na parede do boteco, sabe-se lá porque razão. Anunciava o novo filme de Johnny Deep – Diário De Um Jornalista Bêbado.

— Quem é esse cara?, perguntou com voz pastosa.

— Essa é a minha história, indignou-se antes de debruçar-se sobre o tampo da mesa e apagar num sono pesado e sem quaisquer sonhos.

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