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Filho exemplar (íntegra)

Escova era um dos nossos.

Dia sim e outro também, especialmente ao cair da tarde e no subir da noite, reuníamos ali, naquele Sujinho que existia na esquina das ruas Bom Pastor com Greenfeld, onde o Sacomã torce o rabo e hoje, toda pimpona, está a Estação do Metrô.

Era o ponto de encontro do pessoal da combalida Redação assoalhada com os cabulosos de plantão, a fina flor do ócio e dos desvalidos do Ipirangão velho de guerra. Lá nos encontrávamos sem hora para chegar ou sair. Ouvíamos as histórias do Grande Nasci, mestre de todos nós e, entre um gole e outros mais, contávamos causos e prosas sem fim.

Escova, como já disse, era um dos nossos.

Tido, havido e reconhecido como o mais chegado à prática do esporte olímpico da trampolinagem. Era invejado por muitos, veemente criticado por outros. Mas, há que se reconhecer o homem tinha coragem e lábia.

Por isso, quando ele desaparecia da roda por uns tempos, todos já sabiam o motivo. Único e inabalável. Havia mulher nova no pedaço.

E ele embarcava com tudo nas águas. revoltas da paixão.

A nós, marujos de pedalinhos, cabia a tarefa suprema de justificarmos as ausências do amigo à Dona Encrenca, dignissima Sra. Escova, que, sem ter mais onde procurar, aparecia no Sujinho para saber notícias do paradeiro do maridão sumido de casa e da Redação há dias.

Então, dá-lhe reportagem especial na Amazônia em prol do meio-ambiente. Ou uma sigilosa investigação jornalística sobre uma nova rota de tráfico. Ou ainda uma viagem inesperada para acompanhar determinada celebridade à Ilha de Caras.

Valia tudo para tirar Escova do aperto – e, modéstia à parte, éramos convincentes em nossas criações.

Às vezes, exagerávamos.

Mas, conformada, ela acreditava. Ou fingia acreditar.

Não me perguntem como Dona Encrenca nunca desconfiou do fato de que as aludidas reportagens nunca foram publicadas.

Não saberei explicar nem hoje nem nunca.

II.

A bem da verdade, Dona Encrenca nunca simpatizou com a turma do Sujinho e do jornal.

É muito provável que nunca tenha se dado ao trabalho de folhear nosso tradicional pasquim.

Tem mais.

Não gostava de ver o marido envolvido com aquele pessoal desqualificado, sujeito a chuvas e trovoadas.

Nas rusgas familiares, soltava os cachorros e, no popular, dizia que éramos um bando de desocupados.

— E jornalista lá é profissão?, perguntava às paredes, que não lhe davam ouvidos, sem sequer lembrar-se que era do baticum das velhas Olivettis que Escova tirava o sustento da família e dos próprios vícios.

Aliás, indiferentes ao que pensava Dona Encrenca, nós mesmos tínhamos altas discussões sobre o tema. Não sobre o jornalismo propriamente dito, mas sobre a trampolinagem explícita e as peripécias do Don Juan da Vila Capocha.

Alguns fechavam questão: era vício.

Outros não tinham dúvida: era dom.

O mais sábio de todos nós, o Nasci, encerrava a discussão, com a opinião definitiva:

— É próprio da natureza humana. Quem não foi, ou é ou será…

Enfim…

Filosofias baratas à parte, deu-se que, mais dia, menos dia, o inevitável aconteceu.
Escova queimou o banco de horas que tinha em haver no jornal e caiu na vida sem maiores explicações e delongas.

Até aí nenhuma novidade.

O inédito da cena é que Dona Encrenca, desta feita, pareceu não se abalar com o sumiço.

E foi mais longe.

Todas as vezes que circulava pelos arredores do Sacomã trazia, no semblante, ares de superioridade. Se por acaso cruzasse com um dos nossos, deixava claro sua felicidade por Escova não pertencer mais àquele submundo de sórdidos e bebuns.

Como dizia o Mestre dos Mestres:

— Tem gato na tuba.

Todos já desconfiávamos o tamanho da felina…

III.

Deixemos o gato e a felina em cima do telhado para centrarmos nossa história na incontida felicidade que Dona Encrenca aparentava viver.

Era mesmo de se admirar.

O marido longe de casa – muito provavelmente no desfrute – e ela ali a rir como se tudo na vida fossem flores e encantos.

Era mesmo de se admirar.

Não tardou e parte do mistério se revelou.

Nós, do Sujinho, não éramos o único alvo da fúria e da incompreensão da Sra. Escova.

Havia uma rival inimaginável para nós.

Era Dona Rosinha, octogenária progenitora do dito-cujo Escova.

Não preciso dizer,mas digo. Que se tornaram inimigas cordiais desde que se viram pela primeira vez quando, por força das circunstâncias e de uma inesperada gravidez, Escova anunciou o casamento e a coisa de morar juntos, os três.

A que se reconhecer. Escova sempre foi um sedutor.

Com os habituais salamaleques, foi temperando as duas e, com isso, escapando do aluguel e de outros compromissos financeiros saldados pelo bem-aventurado benefício mensal de Dona Rosinha.

Vinte e muitos anos depois, Dona Encrenca conseguiu a alforria.

Por isso, estava satisfeita daquele jeito.

A sogra concordou em deixar o sobrado da Vila Capocha e ir morar num apartamento de sala e quarto do outro lado da Juntas Provisórias. Lá onde o
Ipiranga faz divisa com o Sacomã.

A princípio Escova não concordou. Levantou um monte de empecilhos.

Mas, por fim, aceitou. Já era hora mesmo…

Porém, como filho exemplar que era e sempre foi, fez algumas exigências.

IV.

Antes de ouvi-las, porém, Dona Encrenca já havia resolvido topar.

Afinal, tem certas coisas na vida que não tem preço.

Finalmente, ela seria a rainha do lar do sobradinho da rua Vemag.

Que, aliás, já estava precisando de uma mão de tinta. E ela, só ela, escolheria a cor. Sem pitacos, nem palpites da sogra.

Poderia mudar os móveis de lugar.

Servir o almoço e o jantar na hora que bem entendesse.

Deixar a TV ligada o dia todo.

E, suprema conquista, ir e vir ao Carrefour quantas vezes quisesse e, toda gabola, pilotar o carrinho de compras pra lá e pra cá, sem ter que dar satisfação a ninguém, muito menos à Dona Rosinha.

Tamanha felicidade valia qualquer exigência. Fossem quais fossem…

Para ser sincero, foram razoáveis as imposições de Escova, o filho exemplar.

Primeiro: ele deveria ir ficar com a mãe as primeiras semanas. Até que Dona Rosinha se habituasse à nova rotina.

Fazia sentido.

A segunda era mais delicada.

Mas, como trato é trato, também foi aceita sem restrições.

Escova escolheria, pessoalmente, a pessoa que seria uma espécie de acompanhante de sua mãe. Seria assim uma espécie de faz-tudo, um misto de enfermeira, cozinheira, uma quase amiga que a socorreria em qualquer emergência.

Inclusive, o ideal mesmo é que a tal morasse com Dona Rosinha.

Não preciso dizer mais nada…

Foi por essa brecha que Jane, uma linda morena de quase 20 anos e incontáveis atributos, pôde deixar São Miguel Paulista, onde morava com uma tia distante, e vir morar pertinho do namoradão, o homem da sua vida.

Preciso dizer quem era o cara.

Ele mesmo: o Escova.

Que demorou quase ano para voltar ao sobradinho da Vila Capocha, com a cara mais deslavada do mundo e a fama de filho exemplar que era e sempre foi.