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O reclamão

Eu não queria. Mas ouvi toda a conversa e, juro, não foi indiscrição.

Também não queria fazer parte dela.

Amém, Jesus, me livre desses babados.

Curiosidade? Ah, sim. Quem vive de alinhavar letrinhas fica sempre atento a uma boa história.

Essas que nos chegam por acaso, muitas vezes, são as melhores.

Meio da manhã de uma segunda que se promete arrastada, a Praça de Alimentação do shopping tem meia dúzia de cadeiras ocupadas. No mais, tudo vazio. Resolvo tomar um café enquanto aguardo abrir a Agência de Câmbio. Pego minha bandeja – café, água com gás e um biscoito) e sento-me numa mesa vazia. Logo em seguida dois senhores (donos de lojas, talvez) sentam-se na mesa ao lado, munidos de seus alimentos, e iniciam a conversa.

Em pauta, o Brasil de hoje.

II.

Não era propriamente um diálogo a conversa.

Um monólogo que acabei por ouvir.

Um dos senhores reclamava de tudo e de todos.

Da Dilma e do Temer. Dos negócios que vão de mal a pior. “Ninguém compra nada. A turma vem andar, bater perna por aqui – e só.” Dos impostos. Das reformas que se anunciam desastrosas. Do Gilmar Mendes, da nomeação para juiz do STF “daquele ex-ministro da Justiça”. Do escândalo da carne. Da Polícia Federal, do Jornal Nacional. Como disse, de tudo e de todos.

Lembrou até aquela velha máxima dos anos 80/90:

“A única saída para nós, brasileiros honestos, é o aeroporto de Guarulhos. Ala internacional…”

III.

O outro senhor acompanhava a lamúria em silêncio. Ora balançava a cabeça como a concordar, ora deixava o olhar perdido nas alturas como a demonstrar indiferença e tédio.

Sei que devemos estar conscientes dos graves problemas que o País atravessa, mas, convenhamos, afiar um discurso desses logo na manhã de uma segunda-feira, não é propriamente melhor estratégia para tocar a semana que se inicia.

Viver em função desses problemas todos – e não os enfrentar – beira a paranoia.

Me pus solidário à sina do incauto ouvinte.

IV.

Estava a ruminar esses pensamentos óbvios e me preparei para ir embora.

O senhor que ouvia acompanhava meus movimentos.

Assim que levantei da mesa e dei alguns picos passos, ouço a voz desesperada a chamar:

“Amigo, amigo…”

Seria comigo?

V.

O amigo do falador, o ouvinte, achara um bom pretexto para escapar à conversa.

Eu lhe dei um bom álibi, sem querer e saber:

“Nossa, quanto tempo que eu não lhe vejo. Precisava mesmo lhe falar. Vamos indo, eu lhe acompanho…”

E deixou o reclamão falando sozinho.

Entendi a letra que me deu. Fui cúmplice em sua fuga.

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