23 de abril.
É dia de Jorge, o santo guerreiro.
Sou devoto. Desde criança…
Uma ligação que começou assim…
1.
Talvez fosse o cavalo branco e belo, ares de nobreza. Talvez fosse a armadura prateada, que confiava magnitude à imagem do cavaleiro.
Talvez ele próprio, o menino, então prestes a completar 4 anos, se imaginasse com coragem suficiente para embates e lutas. Que sequer podia sonhar seriam sua sina vida afora.
Fiquemos com o talvez.
Fiquemos, pois, com o garoto. Que não teve dúvidas quando a amiga da mãe lhe perguntou carinhosa:
— Tchinim, o que você quer de presente de aniversário?
— Não precisa, Olga – rebateu a mãe zelosa.
— Quero aquele santo que tem um cavalo branco – respondeu convicto.
— Tem certeza? – perguntou a moça.
— Tenho.
A mãe intervém:
— Acho que meu filho vai ser padre. Deus o escolheu.
Coisas de mãe…
2.
No dia aprazado da tradicional festinha de aniversário, os olhos do garoto enlevaram-se quando viram a estátua, de pouco mais de 20 centímetros. Não era grande quanto à de Santa Rita de Cássia que o tio exibia na assobradada casa da avó materna. Nem pequena o suficiente para não se impor no meio dos seus brinquedos.
Outra vez a mãe… Zelosa, ela entendeu o que se passava na mente do menino.
— Não é para brincar, não. É para você olhar todos os dias. E pedir proteção.
3.
Primeiro, o santo foi parar em cima do guarda-roupa.
Mas, ele reclamou.
Não conseguia ver direito. E o ‘brinquedo’ era dele.
A mãe sorria, pegava um banquinho, subia e trazia o santo guerreiro para perto das mãos do garoto sonhador.
— Pede a bênção, pede filho.
Ele gesticulava rapidamente o sinal da cruz. Mas, em seu pensamento, era parceiro do próprio cavaleiro que morava na lua e, destemido, enfrentava o dragão, com sua lança justiceira.
— Ele é príncipe, mãe?
Sem ter a precisão da resposta, a mãe abria um sorriso e recorria à fé.
— É um santo, filho. Um santo guerreiro, o corajoso Jorge da Capadócia que se converteu ao catolicismo. E morreu martirizado.
4.
Demorou a entender.
Também, pudera!, não era esse o enredo que queria para sua história.
— Que bicho é esse, mãe?
— É um dragão que põe fogo pelas ventas. Mas, não se assuste porque esse monstro não existe. É só uma simbologia.
— Ah!, sei…
De novo a mãe a mudar o enredo da aventura. Então, Tchinim desconversava. Mas, intimamente, não tinha dúvidas. Se o bicho aparecesse por ali, ele o enfrentaria com sua espada de madeira.
Mas onde arranjaria um cavalo branco?
5.
Segunda, 23 de abril de 2007.
Mais de 50 anos depois…
O homem acorda e, antes de ir para o trabalho, passa na casa da mãe. Vai tomar o café da manhã, rápido, mas obrigatório.
— A senhora está bem? Tomou os remédios?
As perguntas de sempre que ficam sem respostas. Pois, desandam, mãe e filho, a falar das notícias do rádio. Das irmãs distantes. Do neto dela – filho dele – que está um moço. Da vida como ela é – e sempre será.
— Vou indo… Está na minha hora. Bênção mãe.
— Você esqueceu de rezar. Vai ver seu santo. Hoje é Dia de São Jorge.
6.
Dona Yolanda dá a costumeira risadinha quando vê que o filho faz meia volta e se encaminha para o quarto. Por alguns segundos, ele se posta diante da velha cômoda.
Ali, num altar improvisado, o ‘parceiro’ divide espaço com outros santos da devoção da senhora de 82 anos. A estátua está intacta. Só o branco do cavalo amarelecido pelo tempo. Mas, o porte do guerreiro continua impecável. Ainda e sempre na luta contra as forças do mal.
Sente-se em paz e protegido. Também se vê como um guerreiro. Não ganhou todas as batalhas. Mas, preservou a capacidade amar e as infinitas possibilidades do sonho. Não tem do que se arrepender. Fez e faz o caminho com o seu passo. Reza, agradece ao santo e ao milagre da vida.
— Vai com Deus, filho. Que São Jorge o proteja. Hoje e sempre.
— Amém.
7.
23 de abril de 2019.
Sessenta e cinco anos depois.
Ninguém o chama de Tchinim. Apeou da montaria que, na verdade, nunca existiu. A mãe se fez saudade desde junho de 2015. O altar com a imagem agora está na estante ao lado dos livros e de outros santos que herdou da velha senhora.
Na memória, embates e lutas que sequer ousou sonhar. Tristezas, decepções, entende agora, foram apenas – e tão somente – uma simbologia. Soube enfrentá-las com a coragem do menino que se fez homem e as bênçãos do guerreiro que se fez santo.
Saberá enfrentar o novo dia.
Que São Jorge ilumine os nossos passos!
E salve Jorge…
Ogum, guerreiro.
Protetor do povo brasileiro
*A crônica “Salve Jorge” foi originalmente publicada no Blog em 23 de abril de 2007. Também fez parte do livro Volteios – Crônicas, lembranças e devaneios, lançado em 2010, pela Editora Terceira Margem. Resolvi adaptá-la para os nossos dias, pois mais do que nunca precisamos de um padroeiro. Por um Brasil de todos os brasileiros!
clarice falasca
23, abril, 2019Salve Jorge!!! Jorge, guerreiro de todos os brasileiros!!! Esperança…proteção…coragem…Seguimos