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Trinta anos sem Raul Seixas

*A propósito da data, recupero uma entrevista, digamos, quase inédita.

Confira!

I.

Roqueiro, falastrão, prolixo, irreverente, profeta do apocalipse, agitador, maluco-beleza.

Rótulos, a bem da verdade, não faltaram na vã tentativa de crítica e público enquadrarem o imprevisível baiano (de Salvador) Raul Santos Seixas desde seu aparecimento no cenário musical nativo.

Corria o ano de 1972, ainda não havia a crise do petróleo, nem o fantasma da hiperinflação era tão assustador, quando o rock baião “Let Me Sing” sacudiu a poeira do último Festival Internacional da Canção que se teve notícia.

Um deboche rasgado, uma ousadia dançante em plenos tempos difíceis da ditadura.

O desconcertante, como se viu depois, sempre se fez presente na vida e na obra de Raulzito.

Sua morte também não foi diferente.

Ele morreu numa segunda-feira (21/08/89), sozinho em seu apartamento em São Paulo, às vésperas do lançamento do novo disco (Panela do Diabo, em parceria com Marcelo Nova).

Era o sonhado recomeço.

Em suas entrevistas à Imprensa, revelou sempre um total desapego às convenções, ao lugar-comum.

(Aliás, a obra-prima Ouro de Tolo não diz outra coisa).

Revelou-se também lúcido e contestador.

Em meados dos anos 70 chegou a se lançar candidato civil à Presidência na época quente do militarismo.

De outra feita, chegou a negar sua condição de cantor popular.

Aos repórteres, declarou com largo sorriso e habitual ironia.

“Na verdade, sou um ator. Só que represento tão bem, que o pessoal acabou acreditando que eu fosse mesmo um cantor e compositor”.

“Sou de 45″- dizia. “Do pós-guerra. Nasci quando a bomba estava caindo em Hiroshima. Sou da geração sanduíche e tenho que me adaptar aos surfistas de hoje e ao que pensa meu pai. Uma barra”.

Sempre que perguntado, reafirmou o posicionamento único dentro da MPB.

Reconhecia-se também como ativo militante da Sociedade Alternativa e defensor implacável do “raulseixismo”.

“Meu compromisso maior com a sociedade é deixar nela minha impressão digital. Quero que fiquem sabendo que passei por aqui. Que contribuí com alguma coisa. Enfim, que valeu a pena.”

II.

NOSSO ENCONTRO COM O MAGO aconteceu em fins de 77.

Ele estava em São Paulo para lançamento do novo disco O Dia Em Que A Terra Parou.

Sua gravadora, a WEA, reservou dois dias para que atendesse à Imprensa.

Eram sessões individualizadas com os repórteres.

Raul não gostava de “coletivas”.

“Dispersam demais” – dizia.

“Todos os jornalistas se põem a perguntar coisas distintas ao mesmo tempo. Vira uma Torre de Babel. Não dá para concatenar o raciocínio. E eu já falo demais. Aí, sai besteira”.

Desse modo, cada veículo tinha, então, democráticos 45 minutos para falar com Raul.

“Com 15 de descanso que, afinal, nós estamos no Brasil e eu não sou de ferro” – ironizava.

Logo que chegamos à sala onde Raul se encontrava, eu e o amigo Clóvis Naconecy de Souza abrimos mãos de nossos velados temores. Deparamos com alguém simples, aparentemente de bem com a vida e feliz por retomar aos palcos paulistanos após quatro anos de ausência.

Em nenhum momento Raul, à época com 32 anos, deixou transparecer amarguras descabidas ou ser uma pessoa de difícil trato, como se anunciava então.

Ao final da entrevista, avançamos o horário, falamos de nossos (meus e de Clóvis) projetos pessoais que incluíam a consolidação do Jornal da Mooca e uma possível enciclopédia de MPB. Projetos que, aliás, não vingaram, mas que tiveram a aprovação de Raul.

“É isso aí… Vão em frente. Lembrem Caetano: “Como é bom poder tocar um instrumento.”

III.

“DE CANTOR O BRASIL ANDA CHEIO”

– Faz algum tempo que você não vem a São Paulo para fazer show em teatro. Existe alguma razão para a ausência prolongada?

– Na capital, sim. Mas tenho feito muitos shows pelo Brasil todo, pelo Interior. Agora aqui não venho desde 73, quando me apresentei no Teatro das Nações. Pessoalmente, acho teatro uma coisa assim bem elitista, uma coisa pequena para um público bem mais uniforme. Mas, resolvi fazer. Principalmente depois do lançamento do novo disco. Na verdade, prefiro fazer algo mais aberto, pra todo mundo, que dê a sensação de que você está jogando toda sua loucura canalizada e que recebe o eco de volta. Sabe como é? Um trabalho assim para todos os níveis de pessoas. Afinal, a gente já tem o Intelsat por aí.

– Então, o disco novo é a causa do show ou você vai fazer uma revisão crítica de sua carreira? Parece que muitas músicas antigas estão incluídas no programa.

– Não, não, o show é basicamente uma continuação do meu trabalho. Claro que há preocupação de mostrar as músicas novas, mas o importante mesmo é a continuidade do meu trabalho, que se iniciou em 73. Por isso vou cantar músicas conhecidas como “Ouro De Tolo”, “Metamorfose Ambulante”, “Al Caponne”, com novos arranjos, dentro de uma nova concepção. Uma concepção 77, digamos.

– “Metamorfose Ambulante”, inclusive, ganhou uma gravação recente de Ney Matogrosso…

– Pois é. Eu gravei em 73. Fiz essa música quando tinha 14 anos. Guardei. Quando trabalhava na CBS também já tinha “Ouro De Tolo”. Guardei. Tudo assim como se fosse um grande jogo de xadrez, sabe? Cada passo planejado e executado, no momento exato.

– Então não existe o aspecto revisionista no show?

– Fundamentalmente, vou apresentar o novo disco, o que, em essência, significa a continuação da “Sociedade Alternativa”, o movimento que tínhamos em 73, eu e o Paulo Coelho, meu parceiro. Ele agora está morando na Inglaterra. Em 74, houve um problema aqui com a gente e tivemos que sair. Fomos morar em Nova York. Demos um tempo lá. Depois voltamos, e eu resolvi ficar, continuando com a “Sociedade Alternativa”, enquanto o Paulo resolveu ir pra Inglaterra de vez. Não voltar mais.

– Então neste disco continua a “Sociedade Alternativa”?

– Continua com outro nome. Só mudou de nome.

– Qual o nome atual?

– Agora chama-se… “Magro Teimoso”. Por falar nisso, estou com uma saudade incrível do pessoal da “Sociedade Alternativa” antiga. Em 73, tínhamos o Zé Celso Martinez, diretor de teatro que fez “Rei da Vela”, “Gracia Senior” no Teatro Oficina. Havia também dois advogados, o Paulo Coelho… Um negócio muito grande, que começou a se avultar ainda mais. Chegou até Nova York. Lá transamos com o ex-beatle, John Lennon*, um cara fantástico, que fazia parte de uma “sociedade” bem parecida com a nossa. Morei quase meio ano com o pessoal dele, da Newtopia. Foi na época em que ele se separou da Yoko. Fiquei lá por um bom tempo, por isso o pessoal pensa que desapareci. Mas logo que cheguei, reiniciei meus shows pelo Interior do País. Essas excursões são um barato, uma loucura.

*(Atualizando: ao que tudo indica, esse encontro com Lennon nunca existiu; mais uma tiração de onda de Raulzito.)

– Esse tal “problema” foi causado pelas letras?

– Não sei. Entendo a arte como a expressão social de uma época. Então você tem que dar uma de Nero, ficar tocando uma harpa e cantando o que está acontecendo. Pois é, nesse cantar que as coisas se torcem. Você passa a refletir o momento histórico que está vivendo. Mas sem entrar em particularidades políticas, essas coisas. Nada disso. Sempre trato as coisas num campo metafísico, filosófico e ontológico. Um ponto de vista meu, da vida. Só isso.

– Essas preocupações você já demonstrava no início de sua carreira, não é?

– Não sei se vocês sabem, mas quando cheguei ao Rio, não foi para ser cantor. Foi para editar um tratado de filosofia pela Civilização Brasileira. Sou formado e professor em Filosofia. Mas, como lançar um livro é um negócio extremamente difícil, um círculo bem restrito: acabou não dando certo. Vi que a coisa era muito reduzida, tipo público de teatro, então resolvi fazer a mesma coisa por meio da música, do disco. Porque a canção, sim, é uma coisa muito mais incisiva. Um meio muito mais rápido, do qual passei a me utilizar para dizer o que pretendo, para deixar minha impressão digital nesse mundo. Para declarar minha razão de viver ou não, entende! Afinal, estou aqui fazendo o quê? Tracei uma meta, e tenho que ir até o fim.

– Então o processo foi mais ou menos este: você veio para o Rio lançar um livro. Não deu certo. Voltou para Salvador. E posteriormente foi convidado a trabalhar na CBS, como produtor de disco?

– Foi. Aprendi muito lá, cara. Que escola! Trabalhei com todo aquele pessoal do final da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderléia, Renato e Seus Blue Caps… o Roberto, que é um cara incrível.

– Como foi aquela história do disco que você produziu, nessa época, reunindo o Sérgio Sampaio, Miriam Batucada, Edy Star e você?

– Ah! Sim. Chama-se A Gran Ordem Kavernista Apresenta Sessão Das Dez. O disco foi recolhido porque apresentou problemas, segundo a censura. Foi o seguinte: a CBS não adotava essa linha de lançamentos. Acabei perdendo o emprego, mas tudo bem! Aproveitei que o diretor foi para os Estados Unidos e fiz o disco. Uma zorra. Mandei buscar uma harpa egípcia, raríssima, em São Paulo. Gastei uma nota de carreto até o Rio. Só pro cara fazer o acorde final de uma das músicas. Quando o diretor voltou, não deu outra, me chamou e perguntou o que eu queria: ser cantor ou produtor? Foi uma barra, o cara ficou chateado. Mas, aí eu disse: Quero ser artista!

– Aí pintou o festival?

– Isso mesmo. Foi na época do festival. Como produtor, eu havia contratado o Sérgio Sampaio, que tinha inscrito o “Eu Quero Botar Meu Bloco Na Rua”, e eu entrei com o “Let Me Sing” e “Eu Sou Eu, Nikuda É O Diabo”. Foi o último festival. Outra loucura: um festival nacional, e eu cantando em inglês… misturando Luiz Gonzaga, rock.

– Raul, qual sua formação musical?

– Eu sou de 45, do pós-guerra. Nasci quando a bomba estava caindo em Hiroshima. Sou da “Geração Sanduíche”, devo me adaptar aos surfistas de hoje e ao que pensa meu pai. Uma barra violentíssima.

– Você foi influenciado pelo Elvis? Uma vez li que você tinha um dos maiores arquivos do Brasil sobre Elvis. É verdade?

– O Elvis me fez a cabeça, assim como o Luiz Gonzaga, toda aquela cultura maluca de 45, aquela invasão de músicas cubanas. Sobre o arquivo, ele existe. É assim uma espécie de coleção de selo, sabe? Adoro disco de rock antigo, aquele magro, com baixo de pau e bateria. Mas não tem nada a ver uma coisa com outra. Gosto muito de rock. Fico horas ouvindo aqueles discos antigos, como quem coleciona alguma coisa. É muito importante pra mim.

– Esse seu estilo discursivo das letras, dá pra explicar?

– São letras vomitadas, né? É mais uma prosa cantada. Inclusive tenho uma dificuldade incrível pra botar música em letra. Tenho um ouvido péssimo. Dá para ajudar a concatenar uma coisa com a outra, música e letra. Para compor, eu faço assim, uma espécie de uma prosa, depois eu começo a botar aqueles acordes “fuleiros” que eu sei.

– “Ouro De Tolo” é uma das músicas que melhor caracteriza esse estilo, não?

– É, ela é meio assim Bob Dylan. Talvez fosse até influência do Dylan. Mas veja: como é que poderia cantar aquilo. Só falando mesmo. Foi na época em que o Roberto Carlos estava contente e agradecia ao Senhor. Lembra? Aí eu disse que devia agradecer também.

– Lembro que foi a última vez que vi uma música parar o pessoal na rua. As lojas de discos tocavam “Ouro De Tolo” direto e as pessoas paravam, escutavam, riam, tinham reações estranhíssimas.

– É incrível. Primeiro, eles riam. Depois paravam pra pensar. Depois choravam. Mas assim dentro de um tempo… Em São Paulo foi o lugar que o disco mais vendeu. O engraçado é que nunca ninguém vestia a carapuça. O cara sempre ria do que estava ao seu lado, sabe como é? Naquela de o negócio é com ele, enquanto a música era com todos. Sem exceção. Era fantástica a reação.

– Numa música recente você faz críticas ao Belchior e ao Sílvio Brito. Como foi a reação deles, em relação a você?

– Ah! A música chama “Eu Também Vou Reclamar”. O Belchior achou legal, riu pra burro. Tudo bem! Mas o Sílvio ficou zangado comigo. Ficou bravo mesmo. Eu gosto muito do Silvinho, ele é legal pacas.

– Raul, é possível fazer uma retrospectiva de seus discos anteriores, até o mais recente?

– O “Let Me Sing” só saiu em compacto. Depois veio o elepê Krigh Ha Bandolo. Você lembra da revista do Tarzan? Pois é, ‘krigh ha bandolo’, naquela língua fajuta do Tarzan, queria dizer “cuidado, aí vem o inimigo”. Nesse elepê, eu cantava “Mosca Na Sopa”,”Al Caponne”, “Metamorfose Ambulante”, “As Minas Do Rei Salomão”, “Ouro De Tolo”.

– A seguir você gravou o compacto “Guita”.

– Que mais tarde saiu em elepê, junto com “Trem Das Sete Horas”, “Medo Da Chuva”, “Sociedade Alternativa”. Foi assim uma espécie de fase áurea da gente. Estava com pique incrível.

– Foi o disco que mais vendeu?

– Foi. Ganhei o disco de ouro brasileiro. Fantástico.

– Daí veio o Novo Aeon…

Meu terceiro elepê da Philips. Essa também foi uma transação incrível. A gente estava voltando dos Estados Unidos. E foi muito difícil adaptar-se novamente por aqui. Foi incrível para mim. O disco tinha a música “Tente Outra Vez”, que eu gosto muito. Daí lancei no início deste ano o elepê: Há Dez Mil Anos Atrás, que eu estou com uma cabeleira branca…

– Foi o último disco pela Phonogran.

– Esse disco não foi mal trabalhado?

– Não, não foi trabalhado mesmo. Eu estava nos Estados Unidos filmando…

– Aliás, o pessoal da Phonogran se queixava disso: quando você trabalhava o disco, as vendagens subiam acentuadamente. Quando não, o disco vendia, mas não o que se esperava.

– Eu sumia pra eles, entende? Mas não sumia pra mim. Sempre estive aqui no Brasil fazendo shows pelo Interior. Não para a fábrica de disco faturar nisso. Depois, meus discos sempre venderam bem. Na verdade, não gostavam porque queriam que eu fizesse programa de televisão, favores que existem, do tipo “eu te arranjo uma apresentação do Raul Seixas e você inclui no seu programa alguns iniciantes da minha fábrica de disco”, sacou, qual é? O divulgador tem de arranjar show pra mim, e pros outros. Eles querem vender os novos. Então sempre fazem isso com quem já possui um certo nome. Eu me recusava a fazer isso. Então dizia que estava nos Estados Unidos só pra não fazer esse tipo de coisa.

– Tipo lote de filme americano?

– É. Mas tudo é muito normal. Isso é coisa do sistema mesmo. Eu acho legal, contanto que…

– Bem, aí você saiu da Phonogran. e veio para WEA?

– É. Esse elepê é o primeiro que gravo na WEA. Da Phonogran saíram André Midani, Mazola, saiu o Guto, saiu todo mundo que eu gostava. Paulo Coelho também tinha ido embora. Zé Celso, também. Todo mundo se dispersou. E eu me senti assim deslocado. Aí falei com o André, e ele me trouxe para cá, a Warner. Fiz esse O Dia Em Que A Terra Parou que é uma continuação do trabalho de 73. E vai sempre ser, até que eu morra. Sempre falei as minhas músicas no ponto de vista filosófico, que é meu campo, que é a coisa que eu gosto, ponto de vista metafísico, ontológico, olhando todo mundo e a vida, sabe? Estou lutando por isso…

– Daí surgiu a oportunidade do show?

– É. A relação que existe daquele show no Teatro das Nações em 73 e o atual é a continuação de todo o processo histórico brasileiro. Talvez por isso você tenha dito que vou cantar músicas mais antigas. É uma sequência do processo de mutação, do ponto de vista de um brasileiro, como cantor. Nunca cantei algumas dessas músicas para o público de teatro, então acho que seria legal cantar o “Trem Das Sete”, “Mosca Na Sopa”, “Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás” e mais algumas que são bem conhecidas. E que foram importantes para mim na época. Tiveram outra conotação. Gostaria de retomar essa concepção, falar dela, eu gosto muito de conversar com as pessoas nos shows. Acho que show em teatro deve ser mais do que simplesmente um cantor chegar lá, abrir a boca e dizer besteiras. Porque de cantor o Brasil está cheio. Acho que a gente tem que ter um diálogo maior, expandir mais, deixar que as pessoas falem. Ser mais uma peça assim dantesca. Deixar as pessoas participarem, acho isso muito importante em teatro, essa interação com o público.

– Deixar que elas sejam também.

– Que elas sejam. Mas numa boa, que sejam bem, não com medo.

– Qual sua posição dentro da música popular brasileira?

– Esse negócio de raízes, essas coisas são tão difíceis pra responder. Me coloco numa posição de individualismo. Bem individualista, mas deixando, mas permitindo que você seja. Let it be, entende? Todo mundo tem direito de fazer o que quiser, pois é tudo da lei, como diz a letra de “Sociedade Alternativa”. Mas, não pise no meu sapato de camurça azul, lembra o rock do Elvis? Nunca tirei carteirinha de baiano, embora seja baiano; nunca pertenci a nenhum grupo. Sou mais assim raulseixista.

 

Foto: Divulgação

 *Entrevista publicada

no livro “Às Margens Plácidas

do Ipiranga”/1997

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