— As coisas mais simples são, seguramente, as mais profundas – e vice-versa. Uma das poucas certezas que tenho é a de que os homens se comportam, desde os tempos não registrados pela história, como uma manada. Há os que amam, os que têm fé neles mesmos e em suas pequenas, infinitas descobertas. Essa tribo sempre foi necessária e odiada. É a minha. Diminuta, composta por quem aprende a harmonia, o belo – e que se nutre de amplos espaços que os outros só ocuparão muito tempo depois.
A declaração em epígrafe, feita há alguns anos pelo ‘maldito’ Walter Franco, se encaixa adequadamente quando se busca uma definição para a obra do compositor/intérprete Gilberto Passos Gil Moreira. Um fagueiro cidadão baiano que, aos 38 anos, mantém em evidência um dos trabalhos mais criativos da chamada linha evolutiva da nossa música popular.
“Realce”, o mais recente elepê editado pela WEA, sublinha essa afirmação com vigorosa energia. Trata-se, na verdade, de um disco otimista num tempo mais chegado a crises e angústias. Com clima de festa e universalidade. É um “salário mínimo de cintilância”, salientou o músico no empolgante show de lançamento que fez em São Paulo e com o qual pretende percorrer todo o Brasil.
— “Realce” é a reafirmação da necessidade do poético, do lúdico no meio das máquinas. É a socialização do luxo. Um salário mínimo de cintilância a que todos têm direito. Um mínimo de desfrute, de lazer e de prazer.
O novo disco completa a trilogia iniciada com “Refazenda” (de 75, a ocupar o espaço rural) e “Refavela” (com base num espaço cultural negro, em 77). Intercalam-se outros lançamentos significativos: o exuberante Gil Jorge (gravado em 75, ao lado de Jorge Ben), “Gilberto Gil ao Vivo” e “Nightingale”, ambos em 78. O primeiro registra o entusiasmo contagiante de sua participação no Festival de Jazz de Montreaux enquanto “Nightinghale” foi produzido exclusivamente para o mercado norte-americano.
(Em tempo. Nesse período Gil ainda gravou os circunstanciais “Refestança” (Som Livre), com Rita Lee e “Antologia do Samba Choro” (Polygran), com Germano Mathias.)
“Realce” foi gravado nos Estados Unidos, com irrepreensível esmero técnico e musical.
— Todo músico brasileiro sonha chegar a Holywood, brincou o cantor na coletiva à Imprensa.
Suas nove faixas destilam a energia pura de seu indomável criador.
A saber:
“Realce” é um embalado brazilian-funk que apregoa em seus versos a essência de todo o trabalho: “Realce, realce/ Quanto mais purpurina melhor”. A seguir vem “Sarará Miolo”, já gravada em dueto com Nara Leão e incluído também em “Nightingale”. “Super-homem – A Canção” é uma balada convencional que retoma a temática da afeição sem preconceito de “Pai e Mãe” e “Fé Menino”. “Tradição”, um samba no melhor estilo Gil, fecha o lado A sem fugir a esse assunto: a feminilidade.
Gil explica:
— Acho que o mundo está do jeito que está por ser exageradamente masculino. De terno e gravata. Feito pelo homem. Viril e ameaçador. Já é tempo, e como artista entendo assim, de se reequilibrar os pesos até por uma questão ecológica mesmo. Dar o devido realce ao que é feminino. Se verão o apogeu da primavera. Mas, só por ela ser…
O lado B com a discutida leitura para a insinuante “Marina”, de Dorival Caymmi.
— Os críticos que se agüentem, responde Gil.
Em “Rebento”, outro samba chapado, o autor discorre sobe “o ato, a criação e o seu momento”. “Toda Menina Baiana” traz um poeta a alardear, orgulhoso, as primazias das baianas que Deus entendeu dar. A seguir, vem “Logunedé” (um suave mergulho no flanco africano da Bahia) e o disco se encerra com o must “Não Chore Mais”.
Apenas um reparo a fazer.
Realce/show merecia uma temporada maior que os miúdos dois dias que permaneceu em São Paulo. Por uma carreada de razões. Mas, especialmente pelo fato de que o espetáculo mostra um Gil literalmente mágico e endiabrado, no melhor sentido da palavra. Ou na exata dimensão que seu protagonista lhe dá:
— Ser a noite na discotheque depois de um dia de trabalho, ser o futebol no fim de semana (…) “Realce” é a soma de tudo isso. A religiosidade sem seitas dos templos profanos. O espaço dos anônimos de todas as raças.