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Leia esta canção 11

Gosto de um samba do Paulinho da Viola – de um, não; gosto de vários, mas em especial me emociono com este Coisas do Mundo Minha Nega:

“Hoje eu vim minha nega
Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola
onde gravei o teu nome

Venho do samba há tempo, nega
Venho parando por ai
Primeiro achei Zé Fuleiro
que me falou de doença
Que a sorte nunca lhe chega
Que está sem amor e sem dinheiro
Perguntou se não dispunha
de algum que pudesse dar
Puxei então da viola
Cantei um samba para ele
Foi um samba sincopado
Que zombou de seu azar

Hoje eu vim, minha nega
Andar contigo no espaço
tentar fazer em teus braços
um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra
para não perder o valor

Depois encontrei seu Bento, nega
Que bebeu a noite inteira
Estirou-se na calçada
Sem ter vontade qualquer
Esqueceu do compromisso
que assumiu com a mulher
Não chegar de madrugada
e não beber mais cachaça
Ela fez até promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba para ele
que sorriu e adormeceu

Hoje eu vim, minha nega
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas para o céu
Quando eu te aperto em meus braços
Guarda bem minha viola,
meu amor e meu cansaço

Por fim achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro
a causa da discussão
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, fui-me embora
Ninguém compreenderia
um samba naquela hora

Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo
a forma de se viver
As coisas estão no mundo
só que eu preciso aprender”.

O samba tem requintes de lirismo ao falar de um tempo que não mais existe. Uma crônica, com lampejos de notícias de jornal, com personagens raros – o Zé Fuleiro, o seu Bento, o sambista morto e a própria musa a espera do poeta para lhe guardar a viola, o amor e o cansaço.

A lindeza e a precisão dos versos credenciam este samba como uma das obras primas do nosso cancioneiro popular. Curioso, é que Paulinho tinha pouco mais de 20 anos quando o compôs. Estava no começo da carreira – e o inscreveu num daqueles festivais que movimentaram a MPB na segunda metade dos anos 60. Não lembro se o samba ficou entre os cinco primeiros. Lembro que Jair Rodrigues foi o intérprete. Como a canção não exibia aquele final apoteótico típico de tais competições, passou desapercebido aos ouvidos da platéia (que se especializava em vaiar a tudo e a todos) e dos jurados (provavelmente impressionados pela responsabilidade de julgar as primeiras canções da Tropicália – Domingo no Parque e Alegria Alegria).

Lembro que no mesmo festival, o de 67, outra obra-prima ficou de fora: a lindíssima Eu e a Brisa, de Johnny Alf. A música vencedora foi Ponteio, de Edu Lobo e Capinam.

Mas voltemos à música de Paulinho.

Acho lindo o primeiro verso. Trata-se mesmo de um bom malandro que só vem quando pode e quer. Mas, ponderemos, traz o nome da mulher amada gravado no bojo da viola – e isto, sim, legitima a belíssima prova de amor. Aliás, é mesmo um homem apaixonado, reparem. Logo após descrever, um a um, os episódios que viveu, não esquece de lhe declarar imensurável amor. Assim, revê “o sorriso que ela entrega para o céu” quando ele a aperta em seus braços. Assim, quer aprender, com ela, “a forma de se viver”. Assim – e por ela – faz “um samba puro de amor”.

Coisas do Mundo, Minha Nega encerra o dom de nos fazer caminhar lado a lado com o sambista. Faz também com que sejamos cúmplices do jeito encantado com que ele segue vida afora. Por fim, nos convence plenamente da verdade latente no verso final.

“As coisas estão no mundo
Só que eu preciso aprender”.

O tempo fez justiça ao samba. Continua lindíssimo, 40 anos depois – aliás, como só acontece às verdadeiras obras de arte.