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O cochilo do Rei

"Eu não posso mais ficar aqui a esperar…
Que um dia, de repente, você volte para mim ".

Erasmo Carlos estava entusiasmado. Aliás, como não se sentia desde aquele fatídico domingo em que chegou à TV Record. Lá, foi informado que o Jovem Guarda havia sido retirado da programação dominical. Não lhe deram grandes explicações. Mas, fácil entender. Bastou lembrar John Lennon: o sonho acabou…

De 66 a meados de 68, o programa foi sucesso absoluto. Consagrou definitivamente a chamada música da juventude (esse tal de iê-iê-iê) e transformou Roberto Carlos, parceiro de fé e irmão camarada, em ídolo máximo dos brasileiros.

II.

Erasmão curtiu certa fossa, e incertos tempos de ostracismo.

— Pô, bicho, só sabia fazer aquilo. Ir lá no Teatro Record e cantar minhas músicas. Tudo girava em torno da nossa aparição na TV – explicou Erasmo anos depois em entrevista a um jovem e promissor repórter, que humildemente prefiro não declinar o nome.

Roberto continuou, como se dizia à época, na crista da onda. Era quase unanimidade nacional. Tinha a gravadora CBS aos pés, pois continuava grande ‘vendedor’ de discos. Chegou mesmo a ousar um vôo internacional, quando venceu o Festival de San Remo, da Itália, com a belíssima "Canzone Per Te".

III.

Sem outro jeito, Erasmão ficou na dele. Fez algumas parcerias com Benjor. Mas, nada aconteceu. Agora, não. Tinha certeza que as coisas iriam mudar. Foi o próprio Roberto quem lhe disse:

— Bicho, vamos fazer uma música inesquecível, a mais bela entre tantas que já fizemos. E quem vai gravar, originalmente, é você. Depois, sim, pensamos nas canções do meu disco anual.

Palavra de Rei não volta atrás. Assim aconteceu. Trabalharam por semanas. Reuniam-se com freqüência, em horários os mais absurdos. Mas, compensava. Tudo estava indo às mil maravilhas. A temática era a de sempre. A história de um grande amor que ameaça se perder nas sinuosas curvas da vida. Até título já haviam escolhido. "Sentado à Beira do Caminho", que tal?

(Há quem diga que a inspiração veio do maneiro blues “The Docks of The Bays”, de Ottis Redding, que fez um tímido sucesso por aqui. Mas, deixemos de suspeitas e continuemos nossa história.)

IV.

Numa determinada noite, marcaram de se encontrar para terminar de vez o trabalho. Estavam felizes, e algo cansados. Só lhes faltava o refrão que uniria todos os versos. E desse uma levada menos deprê à canção.

Horas depois, Erasmo estava inquieto. Andava pra lá e pra cá na ampla sala da casa de Roberto, no Morumbi. Ora batucava baixinho no violão. Ora balbuciava palavras a esmo. Nada que valesse à pena. Resolveu apelar para o amigo que, imaginava, estar empenhado na mesma e torturante busca.

Olhou para o lado, cadê o Roberto? Foi descobri-lo estirado no sofá, a saborear um belo cochilo. Papéis desarrumados sobre a mesa, caneta no chão. Roberto dormia sono majestoso.

V.

O amigo se indignou.

— O que é isto Roberto? O que é isto? Eu me descabelo (nesse período, todos usávamos longas madeixas) para achar a rima, e você dormindo, bicho. Meu Deus! O que é isto?

Roberto abriu um olho, depois outro. Passou a mão rosto, e tentou se recompor diante do amigo. Para disfarçar, se pôs a cantarolar, sem que se desse conta:

“Preciso acabar logo com isto.
Preciso lembrar que eu existo,
Eu existo, eu existo…”

Pronto. Ali surgia o refrão que Erasmo tanto perseguiu de olhos abertos, e o Rei descobriu nos confins dos sonhos – onde guardamos nossos amores e segredos, além do abençoado desejo de ser o que se é.

VI.

“Sentado à Beira do Caminho” foi um estouro de vendas. Recolocou Erasmo nas paradas de sucesso. E ainda hoje reaparece em tocantes regravações. É uma das preciosas canções do novo CD de Andréa Boccelli. Em italiano, chama-se “L’Appuntamento”.

[Texto publicado no livro “Volteios – Crônicas, lembranças e devaneios”]