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O dia da minha morte

por Jairo Marques

*Folha de S. Paulo – 05/11/2014

Hoje completo 40 anos, penso ainda ter um queijo e uma rapadura para dar até o fim da minha hora derradeira, caso não me caia nenhum pino antes disso, mas o fato de uma moça norte-americana, mais jovem que eu, vítima de um mal avassalador, ter marcado o dia de seu último suspiro mexeu com meu calendário vital.

Gosto da perspectiva de o homem evoluir a ponto de não ter negados direitos sobre si mesmo, mas é certo que se está a uma lonjura planetária da compreensão e entendimento do poder e alcance do improvável, da maturidade de conseguir se desfrutar do gosto daquilo que foge ao grandes projetos, às realizações mundiais.

Entendo bem a complexidade das dores profundas e da carência de esperança para aquilo que se sonhou, contudo reluto em admitir que não haja feitos em vida capazes de reacender os sorrisos, arrepios na nuca, batimentos cardíacos gostosamente acelerados, lágrimas nos olhos de emoção ou mesmo imagens multicoloridas e surpreendentes dentro de um pensamento.

Fico imaginando se no dia marcado para minha morte o Nero, o labrador atentado de minha mãe, acordar daquele jeito insano que tem desde filhote, entrar pela porta do quarto, pular na cama e lamber a minha cara até o fôlego faltar a nós dois.

Fico imaginando se no dia marcado para aminha morte cair uma chuva daquelas aguardadas no sertão e do ar tomar conta aquele cheiro de terra molhada, os passarinhos enlouquecerem de felicidade e cantarem suas sinfonias mais complexas e ainda, de brinde, do céu brotar um arco-íris escandaloso.

Fico imaginando se no dia marcado para a minha morte um sanfoneiro errante aparecer na rua de casa cantando bonito aquela música que refresca qualquer amargor de alma: “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe? Só a levo a certeza de que muito pouco, eu sei. Eu nada sei”.

Claro, tenho de me resignar e não duvidar do drama alheio de levar o dia a dia adiante em meio ao sofrimento, da carência de energia para acreditar que pode existir uma nova chance a cada nova manhã. Mas, não é à toa que o choro diante de um nascimento banha o rosto de felicidade e o choro diante da morte
comprime o estômago e anuvia o semblante.

Quantos milhões de pessoas suplicariam por alguns minutos de despedida ao lado do filho amado e para dar nele um abraço de emoção, para dar um beijo de cinema na grande paixão, para falar, mais uma vez, da importância do amigo.

Mas, na situação da morte marcada, todo o protocolo de despedida considera-se cumprido. O adeus a tudo que se gosta já teria sido dado e, dessa forma, não haveria desarranjos deixados para trás. É só mesmo deixar-se levar.

Prefiro, porém, a firmeza do lado de cá. Do lado de quem acredita, aos 40, que será possível me divertir com um vestido rasgado em uma festa de formatura, que escreverei um texto que, finalmente, o Hélio Schwartsman dirá “ficou bom”, que terei outra sensação profunda de arrepios como naquele dia que me fizeram saltar de tirolesa.

Desejo que, antes de marcar a minha morte, eu possa conseguir mostrar um pouco mais ao mundo o quanto é possível viver diante das mais temíveis impossibilidades.

* Jairo Marques é jornalista. Blogueiro e colunista da Folha de S.Paulo. Escreve às quartas-feira, a cada 15 dias.