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Velhos camaradas

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Chamavam-se Roberto, os dois.

Eram amigos inseparáveis e se misturavam a nós – a turma de caídos e desvalidos que se reunia, dia sim e outro também, no Sujinho que existia na esquina da rua Bom Pastor com a rua Loefgreen, naquela curva onde o Sacomã torce o rabo e o ônibus Fábrica/Pinheiros bufava e rangia suas ferragens.

Pouco ou quase nada sabíamos deles. Não precisava. Ali, quem chegasse e falasse miúdo, bebericasse umas e outras e espiasse a vida com olhar vagabundo era sempre bem-vindo.

Por isso, os acolhemos. Os Doisbertos, como brincávamos.

II.

Quando nos dirigíamos diretamente aos caras, nós os chamávamos de Beto – e, curioso, assim também eles próprios se tratavam. Ambos eram bons de copo, falavam só o necessário e prestavam uma atenção danada nas nossas conversas que, não raro, viravam acaloradas discussões, seja qual fosse o assunto, de futebol a política, da cena da novela (que não assistíamos) ao novo-velho filme de Godard.

Sim, porque o Nasci, o mentor da gang, parecia entender de tudo. Da vida, dos amores e da obra do cineasta francês.

– Quem assistiu ao filme “O Homem Que Amava as Mulheres” – perguntou o Nasci, num sábado ensolarado.

Nenhum de nós. Mas, reconhecemos todos, o título era bem sugestivo.

III.

Havia uma diferença entre os Doisbertos.

Um deles era apaixonado por uma tal de Lu – e, com a moça, vivia um tórrido romance repleto de turbulências, idas e vindas.

Por isso, quando queríamos ser precisos na identificação. Recorríamos ao seguinte expediente: um era o Beto da Lu e o outro o Beto Apenas.

IV.

Em uma incerta noite, o Beto da Lu chegou, aboletou-se em uma das mesas e se pôs a beber ensandecido. Da cerveja passou à cachaça, da cachaça ao ‘bombeirinho’ (pinga com groselha) que, definíamos, como o último reduto do desalento.

Tum!

Logo desabou sobre a tampa da mesa.

Foi o Beto Apenas que nos alertou.

– Ele terminou tudo, com a Lu. Ou melhor, foi a Lu que terminou com ele. Cansou das bebedeiras. Conheceu um sujeito sério, e vai casar.

V.

Dito e feito.

A moça falou e fez.

O Beto da Lu nunca mais foi o mesmo.

Semanas, meses se passaram – e, no dia do tal casamento, fomos incumbidos pela turma, eu e o Zé Pedro, de fazer a guarda do amigo.

Manhã, tarde, noite e madrugada. Tempo integral.

Nossa missão era devolver o moço em casa; breaco, sim, mas são e salvo.

O Beto Apenas não teria condições de acompanhá-lo.

Ele próprio caía no choro toda vez que via a tristeza do amigo/irmão.

VI.

Aquele foi mesmo um dia inesquecível, com trilha sonora de Tim Maia no rádio do Opala com o qual rodamos quase todos os bares de São Paulo.

Os hits eram “Paixão Antiga” e “Velho Camarada” que se revezavam numa vã tentativa de consolar o ex-Beto da Lu, deitado no banco de trás.

VII.

Como os meus amáveis cinco ou seis leitores podem perceber, esta é uma história das antigas. O Sujinho virou a imponente estação Sacomã do Metrô. Boêmios e zuretas, já não se fazem como antes e a implacável roda do tempo nos dispersou a todos.

Soube que o ex-Beto da Lu morreu, alguns anos depois, em um trágico acidente de automóvel.

VIII.

Na manhã deste domingo, cismei de comprar pão em outra padaria, um pouquinho mais distante de casa. Queria caminhar um tanto e adivinhem a surpresa?

Lá encontrei o Beto Apenas numa roda de senhores que bebiam e conversavam, conversavam e bebiam. Como nos velhos tempos. Só os personagens eram outros.

Eu e ele ficamos impactados. Cumprimentamo-nos à distância, como se mal nos conhecêssemos. Mas, tenho certeza, fomos tragados pela inundação de uma saudade doída formatada na lembrança do Beto da Lu e daqueles nossos inesquecíveis amigos.

 

*(foto: jô rabelo)

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