Foto: Amsterdã/divulgação
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59 – A filha mais nova do Seo Libório
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“Eu sei que você vai ser
uma estrela no céu de alguém,
mas por que não pode ser no meu?”
* Pearl Jam
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Aconteceu sem que o Almeidinha se desse conta, e foi no mais antigo dos anos. No tempo da velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor.
Por que incluo o relato neste Crônicas de Viagens?
Aguardem e logo saberão…
II.
Negar, bem que ele negou.
Jurar, também jurou.
Mas ninguém, ali, o levou em conta.
Dizia-se pobre inocente e sequer sabia da existência das três filhas do Seo Libório. O que dizer então da mais nova, ainda uma garota mal (ou bem) saída da adolescência, motivo pelo qual naquele preciso instante estava sendo sacaneado pelo pessoal da Redação?
— Conta a verdade. Só a verdade. Assim todos param de lhe aborrecer, dizia um.
— A verdade nada mais que a verdade. Conhecemos sua fama, dizia outro.
— Vai me dizer que você não conhece a filha mais nova do Seo Libório?
Não conhecia.
E a verdade?
Bem, era aquela mesmo que contou para eles numa daquelas tardes e agora reconto a vocês, com uma ponta de nostalgia e outro tanto de encantamento. Inclusive, com o surpreendente final.
Porque, vida afora, poucos conheci como o Almedinha, jornalista, editor das antigas e inveterado romântico.
III.
A história é a seguinte.
Naquela manhã de novembro, o notório jornalista foi tomar um café no bar/restaurante, desses que em nome da modernidade se transformaram em self-service. Não atentou que faltavam poucos minutos para o meio-dia e lá encontrou Seo Libório, o simpático senhor que era atendente na portaria do jornal. Libório almoçava e o cumprimentou, como de hábito amavelmente. Chegou mesmo a oferecer um lugar à mesa. Mas, Almeidinha agradeceu. Disse que ali não se demoraria, o serviço o esperava e, por um desses impulsos comuns aos que trabalhavam nas antigas redações, deixou paga a conta do café e também a refeição do afável funcionário.
Alguns minutos depois, lá estava o bom velhinho na Redação para agradecer. E também para lhe pedir um favor. Disse que a filha mais nova queria fazer jornalismo, estava prestes a se formar no colegial, 18 para 19 anos, portanto. Disse mais: havia prometido a ela que falaria com o editor, o próprio Almeidinha, “para, dia desses, lhe dar uma orientação sobre a profissão, a faculdade, essas coisas”.
Questão de segundos, Seo Libório desceu para assumir suas funções no térreo e, de imediato entre nós, a reportada, começaram os elogios à garota.
— Lindíssima, disse o Romeu, fotógrafo que a conheceu num desfile cívico estudantil de 7 de setembro na presença do embevecido pai.
“Ela, sim, é uma parada!”
— É uma menina muito esperta. De rosto, lembra a Júlia Roberts, mas é mais taludinha, empolgou-se o Escova, repórter que morava numa vila, próximo ao sobradinho modesto do porteiro.
— Vai dar trabalho, disse a Dona Rosa, senhora que servia o café e, para nos deixar ainda mais curiosos, acrescentou:
“É a xodozinha do Libório e de todos quantos a conhecem.”
— Mas, é quase uma menina, completou Almeidinha para disfarçar e, se possível, encerrar o assunto.
Sentiu-se, estranhamente, algo incomodado, ansioso.
Pior a emenda que o soneto. Todos riram.
— Quem não te conhece que te compre, arrematou Alícia, a estagiária a duvidar da absoluta inocência do chefe e visivelmente preocupada com a possível concorrente.
IV.
Na redação, todos notaram a repentina mudança. Parecia que o homem, desde daquele dia, estava a se preparar para o encontro.
Eu, particularmente, tenho uma tendência a ficar imaginando coisas.
Dei de reparar que o Almeidinha vinha diariamente com a barba feita, o farto bigode aparado, a botinha à la Beatles no brilho – e se preocupava em não usar as velhas camisas surradas de sempre.
Pode ser impressão, mas, todos concordamos, minhas observações faziam sentido.
Seo Libório, por sua vez e inocentemente, tratava de atirar mais lenha à fogueira.
Contou à filha a gentileza de Almeidinha (“que bobagem”, relevou o tal cinicamente) e disse que ela ficou ainda mais interessada em conhecê-lo. Elogiava sempre os seus textos na coluna Repórter GI, e agora então…
O que seria esse “e agora então”?
— Fico feliz em poder ajudar, antecipou-se Almeidinha, mais para espicaçar a estagiária faladora, e acrescentou:
— Quem sabe ela não pode ficar por aqui uns dias pra ver como a coisa funciona.
V.
Depois desse dia, Seo Libório por conta e risco postergou a visita da moça três ou quatro vezes.
Quando não tocava no assunto, era a vez de Almeidinha não se fazer de rogado.
– Olha, às sextas-feiras, é o melhor dia para ela vir.
O senhor sorria um riso triste e, ainda sem querer, lhe provocava:
— Ela quer tanto conhecê-lo.
O ‘bom dia’ do Seo Libório continuou o mesmo. Amável e simpático. Mas, pouco a pouco, mesmo com singelas alusões que o Almeidinha fazia à garota, nada do homem dizer quando ela viria. O entusiasmo, a essa altura, era só do Almeidinha, como lhes disse acima um inveterado romântico, desses que ainda mandam flores.
VI.
O devaneio do amigo foi pelos ares, logo na primeira semana de janeiro.
Seo Libório subiu à Redação com o semblante preocupado, mas orgulhoso.
Não foi preciso lhe perguntar. Apressou-se em dizer a todos nós:
— É a minha menina, a mais nova… (Almeidinha fingiu uma certa ausência, como a não entender o que Libório dizia.) Pois ela mudou de planos. Não quer mais fazer jornalismo. Ao menos, por enquanto.
O editor abriu as duas mãos num gesto inconsciente e rápido. E Seo Libório completou com voz arrastada e a tropeçar na emoção.
— A minha mais nova quer ganhar o mundo.
— Como assim, alguém perguntou.
— Viajou para Londres sem data para retornar. Foi num intercâmbio que ela mesma arrumou e, sei bem, não volta tão cedo. Quer conhecer outros países, outros povos. É uma destemida, não acham?
Almeidinha foi sincero:
— Eu não acho nada. Só perco.
— Como assim?
— Nada, nada. Vai ser uma experiência e tanto. Lá estará certamente melhor do que aqui. Veja a questão da violência desta cidade.
(Almeidinha caprichou na resposta para driblar o constrangimento e a própria decepção.)
VII.
Isto posto, nada a declarar.
Vida que segue.
Nas primeiras semanas, meses até, Seo Libório fazia questão de nos informar (e ao Almeidinha, casmurro que só) sobre o paradeiro da moça.
— A minha mais nova está em Paris.
— Agora foi para Madri. Vai trabalhar lá.
— Precisa ver o cartão que me mandou de Roma.
— Imagine para onde aquela maluquinha vai viver agora… AMSTERDÃ! Pode?
Seo Libório sabia de cor o roteiro das andanças. Mas, as novidades foram escasseando. Até que não se falou mais no assunto.
VIII.
(*foto: arquivo pessoal)
Mesmo assim, naquela noite, tanto tempo depois de toda essa tramóia, Almeidinha e o pessoal da Redação comemoravam sei lá o quê quando, a certa altura, desandei a falar da minha recente viagem com parada especial em Amsterdã, suas belezas e curiosidades. Os canais, os prédios de fachada coloridas, os parques, o Museu de Van Gogh, as ruas repletas de gente (aparentemente) feliz, os dicks, a singeleza da aldeia de pescadores que fui visitar…
Não sei… Não sei se foi o tom inebriante do vídeo do Pearl Jam que a TV mostrava e seus sugestivos versos, o efeito das bebidas ou a alegria retumbante do meu relato, a verdade é que o grande e magnânimo Almeidinha resolveu fazer uma inesperada confissão:
– Que fim levou a filha mais nova do Seo Libório, Rudi? Você a encontrou por lá? Tem alguma notícia? A boa notícia que espero a cada manhã. Antes mesmo que o amável Libório me dê “bom dia”, imagino ouvir dele um “enfim, ela voltou”.
A princípio, não entendemos direito o que estava acontecendo, mas o veterano jornalista, breaco que só, afrouxou ainda mais gravata no colarinho aberto, deu outra golada no Malbec de sua predileção e continuou em tom de desabafo:
– Então, Rudi? Quem sabe você não tem alguma pista? Não reparou, mesmo que assim de relance, uma brasileirinha esperta com ares de quem quer ganhar o mundo, taludinha de corpo, mas que lembra, como é mesmo nome daquela atriz?
E ele próprio concluiu:
– Nem sei o porquê lhe pergunto sobre ela agora? Talvez porque ainda bata em mim o vislumbre do que poderia ser, e não foi. Sei, sei, não a conheço. Mas, sinto tanto a sua falta.
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* Esta crônica é na verdade de 2004. Achei entre meus perdidos textos – e a postei em 31 de outubro de 2006. Foi feita a partir de uma crônica fantástica, A Primeira Mulher do Nunes de Rubem Braga, publicada em outubro de 1957. Teve também como óbvia inspiração, além da canção do Pearl Jam, um velho samba, “Seu Libório”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, feito em 1936.
Minha reverência ao inesquecível Almeidinha,meu primeiro editor, que alguns conheciam como AC, o último dos românticos.
O que você acha?