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A importância de lembrar Vlado

Para a História recente do Brasil e para o jornalismo
a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975,
nas dependências do DOI-CODI,
é um marco que propõe uma reflexão sobre
os caminhos que trilhamos ao longo desses 30 anos.

Primeira Parte – A CRÔNICA

“Você me prende vivo. Eu escapo morto” – Pesadelo, Paulo César Pinheiro

01.

O jornalista não deve temer chegar ao fundo do poço na busca dos fatos, da verdade. É preciso encarar todos os sacrifícios que esta verdade impõe. Não é lá muito fácil. Mas, se não for assim, é melhor procurar outra profissão…

As palavras não foram exatamente essas, mas o teor da conversa, sim. Inesquecível para o estudante do curso de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, lá no mais longínquo dos anos, 1975. A voz convicta do professor, aliás, não deixa transparecer qualquer rancor. Ao contrario. Não quer impor nada a nenhum dos presentes. Fala naturalmente ao destacar a seriedade que a profissão, esta sim, exige ainda mais se considerarmos a áspera realidade que vive o País.
Um grupo de alunos ameaça reclamar. Todos – enfatiza o professor -, todos estão convocados a trocar um provável fim-de-semana ensolarado pela presença obrigatória no campus da USP. A idéia é fazer um “raio x” dos problemas que a Cidade Universitária apresenta em termos de infra-estrutura e planejamento urbano.
Alguém lembra: os estudantes ainda não viram publicada sequer uma linha dos trabalhos que realizaram ao longo de quase três anos de curso. Dá para se imaginar que toda essa ‘correria’ será em vão. A disciplina é Telejornalismo e não há equipamentos – sequer uma câmera – para a realização de tamanho projeto ou de qualquer outra cobertura que fosse – a inauguração de três ‘preciosos’ espelhos d’água artificiais em frente à ECA, por exemplo.
O professor responde que trabalharão com máquinas fotográficas e posteriormente será montado um documentário audiovisual. O que importa mesmo, ressalta, é o conteúdo, as reportagens, o serviço que prestarão àquela comunidade e seus arredores.
Não há formalismos, nem pose de “dono da verdade”. Apenas deixa bem nítido que ele não está ali só de passagem. Traz um aspecto cansado de quem trabalhou madrugada adentro — é diretor de jornalismo da TV Cultura. Os alunos se convencem quando ele encerra o assunto repetindo o alerta:
— Se não for assim, é melhor procurar outra profissão…

02.

Semanas depois, ao assistir ao espetáculo “Brasileiro Profissão Esperança”, os atores em cenas – Paulo Gracindo e a cantora Clara Nunes – mostram-se emocionalmente abalados; diria algo desconcertados. Há uma atmosfera de tristeza e indignação. Talvez as personagens de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho) pedissem esse desassombro.
Fim da sessão, aplausos. E as cortinas se fecham. Os aplausos continuam. Os atores reaparecem. Clara não contém as lágrimas. Gracindo dá a notícia:
Sábado, 25 de outubro de 1975. O jornalista e professor Vladimir Herzog morreu tragicamente nas dependências do DOI-CODI de São Paulo.
— É preciso encarar todos os sacrifícios – alguém pensa na platéia.
Entende-se agora a tristeza e a indignação.

03.

E a História deste País começa a mudar.
São os tempos negros da repressão. O Governo Médici fez “escola”. E mesmo o general presidente Ernesto Geisel encontra sérias dificuldades para conter “abusos” em São Paulo. Organismos militares e paramilitares agem descontroladamente em nome do que entendem “segurança nacional”.
Em setembro deste ano, ao falar para estudantes de jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo, o então presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Audálio Dantas, lembrou que, naquele momento, havia uma cisão entre os próprios militares. O grupo liderado por Geisel, que tinha como mentor intelectual o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, queria devolver o governo aos civis e deu início a um processo de abertura democrática, convenientemente definida como “lenta, total e gradativa”. Em contraponto, militares ultraconservadores, liderados pelo general Sílvio Frota e pelo general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do IIo.Exército de São Paulo, não se dispunham em abrir mão do Poder.

“Havia uma disputa, uma luta entre essas duas correntes. Ou seja, um movimento subterrâneo que a gente pode considerar um golpe dentro do golpe. Estabeleceu-se uma guerra dentro do próprio Sistema. E a sociedade ficou no meio dessa guerra. Houve uma onda de prisões arbitrárias que atingiu vários setores da sociedade. E, no início de outubro de 1975, atingiu aos jornalistas. Jornalistas que eram tidos como pertencentes ao Partido Comunista Brasileiro e estariam tentando reorganizar o Partidão que estava então na clandestinidade. Eram onze jornalistas presos, até que Herzog se apresentasse na manhã daquele sábado… Ele foi o décimo segundo”. (1)

O jornalista e escritor Rodolfo Konder era um dos jornalistas presos no DOI-CODI e chegou a falar com Herzog momentos antes de sua morte. Ele define aqueles dias de violência e tensão com um provérbio indiano.

“Quando dois elefantes brigam, quem leva a pior é a grama. Nós éramos a grama naquele momento.” (2)

04.

A morte de Vlado é a primeira arbitrariedade a escapulir da ação dos censores e dos cães de guarda do que chamavam ‘ordem pública’. É a primeira notícia a “passar” ao brasileiro médio de que o País está subjugado à nefasta ditadura. Apesar do famigerado “milagre econômico”. Apesar da aparente tranqüilidade. Apesar da propaganda massificadora sob o lema facistóide “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Apesar de tudo, havia muito a ser feito. Especialmente para quem exercia a função de jornalista, no entender do diretor de Redação da revista Carta Capital, Mino Carta

“Tive um grande envolvimento com este episódio. Entendi ali que o País precisava de um jornalista e não apenas de um profissional de imprensa.” (3)

No livro Castelo de Âmbar, Mino escreve na pelo de seu auter-ego Percúcio Parla:

“A morte de Vladimir Herzog é o ponto de ruptura. Mino sabe que a sua concepção de jornalismo já não se justifica à sombra da arvorezinha, símbolo da Abril, e o impele na direção de outras experiências.”

Durante encontro com estudantes na Universidade Metodista, o diretor de Redação da Carta Capital retomou o tema e acrescentou:

“Naquele momento, apesar de tudo, apesar dos riscos, sentíamos uma grande esperança. Acho que a morte do Herzog é um ponto de partida muito importante. As contradições da ditadura começam efetivamente a se definir e a se revelar.” (1)

06.

Os dias que se seguem são de muita movimentação. E apreensão. Políticos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), jornalistas, líderes sindicais e religiosos, representantes de entidades e estudantes preparam um culto ecumênico na Catedral da Sé. O arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright (da Igreja Presbiteriana) recebem ameaças e recomendações para os riscos da manifestação. Não se intimidam e seguem com o projeto. No dia da cerimônia — sexta-feira, dia 31 –, a cidade amanhece tomada por comandos que, espalhados em pontos estratégicos, interceptam a quem bem entendem. Querem dificultar o acesso de quem planeja chegar ao ato. Mesmo assim, 8 mil pessoas lotam a Catedral e os arredores da Praça da Sé para reverenciar a memória de Vlado.
Diz Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e um dos articuladores do culto e da corajosa posição dos jornalistas naqueles dias.

“Acho importante que se situe aquele momento. O culto ecumênico e todas as repercussões da morte de Herzog mostraram que não aceitávamos a versão do suicídio. Houve um crescimento do movimento, a partir do Sindicato dos Jornalistas e dos estudantes. E o culto, com a presença do cardeal arcebispo de Pernambuco, Dom Hélder Câmara, representou o principal momento em que a sociedade, por intermédio de várias organizações, despertou para uma situação que não podia continuar. Foi a gota d’água, o ponto de partida para um processo que, daí para frente, cresceu no sentido de denunciar as violências que eram cometidas pela ditadura. E que eram inadmissíveis.” (1)

Ao documentário “Catedral. Um Silêncio Em Memória a Herzog”, exibido pela TV Senac, em 25 de outubro de 2005, o então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, lembrou suas palavras no culto. E o silêncio que se seguiu após serem proferidas.

“Ninguém toca impunemente no homem que nasceu no coração de Deus.”
“Nas minhas dores, ó Senhor, fica ao meu lado”- responderam os presentes. (4)

Silêncio mais absoluto e representativo, fez-se quando foi anunciada a presença de Dom Hélder que, por sua postura em defesa dos oprimidos e da democracia, estava proibido pelos militares de fazer qualquer pronunciamento público – mesmo que fosse um sermão dominical. Naquela sexta-feira, em pleno altar, Dom Hélder confidenciou ao ouvido de Dom Paulo:

“Hoje o chão da ditadura começou a tremer. É o começo do fim.” (4)

À saída da Catedral, os repórteres perguntavam o que Dom Hélder tinha a dizer:

“Senhores, há momentos em que o silêncio fala mais alto.” (4)

À revista Aventuras na História, número 26 de outubro de 2005, o jornalista e historiador Elio Gaspari, autor do livro “Ditadura Encurralada” que narra esse período, ressaltou:

“A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial, revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria reafirmação”.

No livro, ele dá mais detalhes:

“À noite (de segunda, dia 27), a sede do Sindicato dos Jornalistas está repleta. Audálio Dantas preservava a todo custo sua conduta legalista. Evitava complicações chamando a assembléia de “reunião de informação”. Mantinha os comunicados em linguagem seca, sem adjetivos. Não dava seguimento às sugestões de passeatas, nem ouvidos aos estudantes. Até que aconteceu o inevitável: um jornalista propôs que o sindicato convocasse a população para um ato religioso pela memória de Herzog. Acerimônia foi marcada para sexta-feira. Não se sabia onde, mas na manhã seguinte o cardeal Arns tomou a iniciativa. Ofereceu a catedral da Sé e informou que lá estaria.”

“De acordo com os costumes da ditadura, o cadáver de Herzog deveria ser esquecido na tarde de domingo, depois de um rápido e silencioso enterro. A viúva estendera a crise até segunda-feira. Pelo que acontecia em São Paulo, a mobilização duraria no mínimo mais quatro dias.”

Parte 2 – TRINTA ANOS DEPOIS…

“O muro caiu, olha a ponte da liberdade guardiã.
O braço do Cristo horizonte abraça o dia de amanhã” — Pesadelo, Paulo César Pinheiro

07.

25 de outubro de 2005. Trinta anos depois.
O Brasil nunca mais foi o mesmo depois da morte de Vladimir Herzog.

1976 – O metalúrgico Manuel Fiel Filho é torturado e morto no Doi-Codi em São Paulo. O presidente Ernesto Geisel exonera o general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército em São Paulo.
1977 – Mais de 10 mil estudantes saem às ruas em São Paulo em protesto contra o “Pacote de Abril” decretado pelo presidente Ernesto Geisel e que propõe o recesso parlamentar e medidas que pretendem impedir o avanço da Oposição nas eleições.
1978 – Congresso aprova emenda constitucional que extingue o Ato Institucional no. 5. Metalúrgicos do ABC iniciam movimento grevista.
1979 – O presidente general João Batista Figueiredo aprova Lei da Anistia. Retorno dos exilados políticos.
1981 – Duas bombas explodem no Rio Centro, Rio de Janeiro. Show comemorativo do 1º de Maio. Um sargento do Exército morre e um capitão sai ferido. O artefato explodiu no colo do sargento quando o capitão estacionava o veículo.
1982 – Franco Montoro, do PMDB, se elege governador de São Paulo.
1984 – Movimento das Diretas-Já mobiliza o País. Mas, a emenda Dante de Oliveira é derrotada no Congresso.
1985 – Tancredo Neves é eleito presidente da República, no Colégio Eleitoral, mas sequer chega a tomar posse. O vice José Sarney assume em seu lugar.
1986 – Lançamento do Plano Cruzado que congelou preços e salários.
1989 – Na primeira eleição direta para presidente desde 1960, Fernando Collor de Mello derrota Luiz Inácio Lula da Silva.
1990 — Collor anuncia o Plano Collor. Foram bloqueados saldos de contas correntes e cadernetas de poupança e preços e salários são congelados.
1992 – Para escapar ao impeachment, Fernando Collor de Mello renuncia. Assume o vice Itamar Franco.
1994 – Lançamento do Plano Real pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.
1995 – Fernando Henrique é eleito presidente.
1998 – Fernando Henrique é reeleito.
2002 – Lula se elege presidente em sua quarta tentativa de chegar ao posto.

08.

25 de outubro de 2005. Trinta anos depois.
A memória de Vladimir Herzog é reverenciada com ampla programação de eventos, organizada pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, que se intitulou “Vlado, 30 Anos de Vida Eterna”. Houve ainda inúmeras iniciativas, como lançamento de livros e documentários, além de uma série de realizações nas escolas de jornalismo. A primeira delas, a “IV Semana de Jornalismo – Herzog, 30 Anos Depois” realizou-se no campus Rudge Ramos da Universidade Metodista de São Paulo, promovida pela Faculdade de Jornalismo e Relações Públicas. De 20 a 22 de setembro, doze jornalistas’ se revezaram em nove palestras e uma oficina. Ao lado dos professores do curso de jornalismo, discutiram o caso Herzog e o que representou para a sociedade brasileira, a evolução (ou não?) do jornalismo nesse período e como se pode ampliar os limites do ensino de jornalismo para além das salas de aula e dos laboratórios da universidade.

09.

O Brasil nunca mais foi o mesmo depois da morte do jornalista Vladimir Herzog.
E o jornalismo quais os rumos que tomou nesses 30 anos de História, propositalmente aqui com H maiúsculo…
Parece que, ao perder o inimigo comum, a ditadura, — em abril de 1985 quando um civil assume a Presidência da República — os profissionais de imprensa ficaram sem o mote e sem a indignação dos tempos do obscurantismo. Discute-se hoje, inclusive, se ainda somos uma categoria profissional ou apenas pleiteamos — individualmente ou em pequenas corporações – uma certa estabilidade financeira, uma relativa projeção e a glória maior da “amizade” dos donos das grandes empresas de comunicação.

“O Brasil é o único lugar do mundo onde os jornalistas chamam seus patrões de colegas” – diz o jornalista Mino Carta, diretor de redação da revista Carta Capital, ao participar da noite de abertura do IV Encontro de Jornalismo, ao lado do jornalista George Duque Estrada, que estava preso no DOI-CODI no dia em que Herzog morreu.(1)

10..

No painel da manhã de quarta-feira (21), o jornalista Juca Kfouri explicou que, ao longo desse período, houve “muitos progressos e outros tantos retrocessos”. Explicou também que a chegada de uma leva de novos profissionais formada pelas escolas de jornalismo deu um tom mais crítico às redações. Em contraponto, lembrou que “a garotada daquele tempo era mais pretensiosa”. Saudavelmente, ousava sonhar em fazer a revolução a partir do teclado das velhas Olivettis sem tampo. Salvar o mundo – esta era a proposta. Que, para ele, mesmo diante de tantos avanços tecnológicos e de todos os interesses em jogo, deve permanecer como a base de todo o procedimento jornalístico.

“Continuamos a ser os chatos de plantão. Os caras que botam o dedo na ferida. Jornalista é para mostrar o que está errado. Esta é a nossa função. É claro que existe a boa notícia e é gostoso dar a boa notícia. Mas, jornalismo é, antes de mais nada, oposição.” (1)

E seja em que área for que você estiver trabalhando. Inclusive no jornalismo esportivo, especialidade de Kfouri.

“O jornalismo esportivo deve estar ligado com a realidade nacional. O futebol é das manifestações culturais mais arraigadas na alma do povo brasileiro. Não dá para separar isso do dia-a-dia de sua atividade como jornalista. Nunca esquecer que torcedor de futebol também é cidadão.” (1)

Fora do âmbito da formação profissional, Kfouri ressaltou que o maior dos retrocessos está calcado na crise econômica que o setor enfrenta. E que gerou uma situação de desemprego até então inusitada.

“Em 35 anos de profissão nunca tinha visto nada parecido. O dizimar que houve nas
redações. O que se fez com os salários foi realmente grave. Tudo porque os donos dos veículos de comunicação acreditaram nas próprias mentiras. Acharam verdadeiramente que o real era equivalente ao dólar e se endividaram em dólares para construir coisas que não eram o coração do negócio. Um que foi para a lista telefônica, outro que foi para os celulares e mais outro que foi espalhar cabos em todas as cidades do País. Resultado: todos quebraram.” (1)

11.

Para o jornalista e ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, que participou do painel da noite de quinta-feira (22), três aspectos pontuam às necessidades do jornalismo atual. A saber: a qualidade da informação, o equilíbrio e uma cobertura mais pluralista. Mesmo assim, ele vê avanços em relação ao jornalismo que se fazia nos anos 70 – quando morreu Herzog. “Mesmo assim, é um padrão insuficiente”, argumenta Beraba.

“Nós erramos muita informação. Apuramos muito mal. Investigamos mal. O leitor que está cada vez mais informado, pelas diversas formas de mídia, aponta nossas deficiências.” (1)

Segundo ele, em parte isso é resultado da má formação que o estudante de jornalismo. De resto, uma deficiência geral do estudante brasileiro. Começa no ensino de primeiro grau, passa pelo ensino médio e chega capenga às universidades. Beraba amplia essa crítica também às empresas midiáticas “na medida em que poucas têm investimentos na área de formação e treinamento de seus profissionais”.

“Então, se formos discutir os vários problemas que assolam a imprensa e contribuem para um questionamento em relação à sua credibilidade, veremos que o ponto fundamental é a questão da apuração da informação.” (1)

Os outros dois pontos, citados por Beraba, trafegam pela mesma avenida. Ou seja, os jornais brasileiros precisam se modernizar – não apenas graficamente –, mas também e principalmente em termos conceituais.

“Basta ver como os jornais fazem suas coberturas para percebemos esse desequilíbrio. Ademais, os jornais precisam ser mais pluralistas nos temas que abordam, nas opiniões que trazem, nos pontos de vistas, nas análises, na diversidade de suas reportagens. Ou seja, sair daquela coisa monotemática que marca os jornais hoje em dia.” (1)

12.

O repórter especial do Fantástico, Valmir Salaro, abriu a Semana na manhã de Terça, dia 20. Ele salientou que “hoje a velocidade da informação é imediata”. E esta é a grande transformação que vivemos nesses 30 anos. Até em função da mão pesada da censura, o jornalismo padecia de um maior poder de investigação à época de Vladimir Herzog. Era combativo, por força de circunstâncias e natureza. Mas, se fosse publicar algo, era indispensável à declaração de uma autoridade que comprovasse o fato.

“Hoje se você tem um gravador, só com isso já faz uma grande reportagem para qualquer jornal, com uma baita denúncia. E isso é um ponto ao nosso favor.” (1)

Mesmo assim, Salaro acha que é fundamental “uma boa história”.

“O jornalismo evoluiu muito. Mas, sempre precisou de uma boa história para existir. E também da curiosidade do jornalista para ir atrás dessa boa história.” (1)

13.

Do alto de seus 50 anos de jornalismo, o repórter José Hamilton Ribeiro concorda com Salaro. Mas, fez uma ressalva na tarde de quarta, dia 21, quando esteve na Universidade: é preciso vocação.

“A pessoa que tem vocação para ser jornalista vai ser jornalista, e dos bons. É uma profissão de competição, de muita cobrança. O erro do jornalista é mais visível. Fica escancarado; não tanto para o leitor, mas para os colegas. É uma profissão estritamente vigiada. Mas, como disse, depende da vocação. Havendo vocação, o resto é fácil.” (1)

Para se ter uma boa história, segundo Zé Hamilton, é fundamental que tenhamos – e valorizamos – o bom repórter. E essa é uma espécie em extinção nos dias atuais.

“O repórter é jornalista. Mas, nem todo jornalista é repórter. Você pode exercer a função de edição, direção, chefia disso ou daquilo, e não é repórter.” (1)

O repórter está sempre diante do novo, do inusitado. Então, obrigatoriamente ele tem de partir do zero. “Assumir sua ignorância”, como disse Zé Hamilton.

“Se você chega numa reportagem achando que sabe tudo, cai do cavalo rapidamente porque cada pessoa chega com um pensamento diferente. Traz algo que você precisa distinguir. Alguma coisa que ele sabe mais daquele assunto da reportagem. Se você desistir dessa santa ignorância, você nunca será um bom repórter.” (1)

Parte 3 – CONCLUSÕES

“Quando o muro separa uma ponte une.” — Pesadelo, Paulo César Pinheiro
.

14.

Outubro de 2005. Manhã do dia 3, um domingo como outro qualquer. A colunista da Folha de S.Paulo, Mônica Bergamo, abre sua coluna com a entrevista com o ex-governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Na verdade, é uma não-entrevista. Ele se mostra irredutível em seu silêncio sobre Vlado:

“Dei umas mil entrevistas sobre o Vlado. Primeiro foi uma entrevista longa para o Paulo Markun (autor do livro Vlado). Então falei para todo mundo… É uma repetição enfadonha. Eu vou não passar mais 30 anos falando do Vlado.”

E acrescenta:

“Parece um problema classista. Os jornalistas querem fazer um mártir. Vlado é de fato um mártir. Mas e o Manuel Fiel Filho? Por que não me entrevistam sobre ele?”

Diante da insistência da entrevistadora, faz um desabafo:

“Eu falei duas horas para a TV Globo e só colocaram 30 segundos no ar (…) Sempre conversei de maneira absolutamente aberta e transparente com os jornalistas. Mas, confesso, está na hora de mudarmos de assunto.”

15.

“Importante conscientizar as gerações do futuro para nunca mais se omitir diante das injustiças.” (5)

A declaração acima é do rabino Henri Sobel, feita ao documentário “A Presença de Herzog”, exibido no domingo, dia 5 de novembro, pela TV Cultura. Um contraste à postura intransigente do ex-governador.
Cabe, porém, uma ressalva. Paulo Egidyo foi governador de São Paulo por indicação do presidente Ernesto Geisel e seu nome andou na lista dos ‘procurados’ pela ala dos militares radicais que mataram Herzog. Portanto, é compreensível o desconforto – inclusive reforçado pela indiferença com a produção do Linha Direta da TV Globo, que tratou do Caso Herzog, mostrou pelo seu depoimento.
Paulo Egydio era o alvo, portanto. A estratégia da “tigrada” era emperrar o processo de abertura democrática, defendido por Geisel, Golbery e pares de caserna. Para isso, imaginavam mostrar a fragilidade do presidente Ernesto Geisel em conter o chamado “avanço comunista”. Queriam tachar o governador Paulo Egydio de, no mínimo, estar acobertando uma horda de “vermelhinhos” nas dependências da TV Cultura.

“A prisão de Herzog era o primeiro passo neste sentido” – disse o jornalista George Duque Estrada. (1)

Por meio de Herzog, chegariam ao secretário estadual de Cultural, o empresário e bibliógrafo José Midlin e assim, através deste, emparedariam Egydio e conseqüentemente o presidente Ernesto Geisel.

“Na noite do sábado em que morreu Herzog, por coincidência, havia festa na casa do ministro do Exército, Sylvio Frota. Durante o jantar, fizeram um brinde ao ‘futuro presidente da República’. Não era o primeiro” – conta o historiador Elio Gaspari no livro ‘A Ditadura Encurralada’.

Frota era um dos interessados no recrudescimento do Regime – e uma pedra no caminho da redemocratização.

16.

Apesar de reconhecer as razões do ex-governador para não falar no assunto, as palavras do rabino Sobel fazem mais sentido. As novas gerações precisam conhecer este fato que, queiramos ou não, mudou a cara do País. O 25 de outubro merece mesmo reflexão – e até uma avaliação do que se andou fazendo nos últimos 30 anos.
Especialmente no âmbito do jornalismo as discussões parecem hoje intermináveis. Além das supracitadas pelos jornalistas que participaram da IV Semana, uma boa referência desse desenvolvimento está no livro ‘O Jornalismo dos Anos 90’, de Luís Nassif, outro estudante da ECA nos anos 70.

“Dos anos 50 a meados dos anos 60 o jornalismo foi refém dos partidos políticos. De meados dos anos 60 ao final dos anos 70, refém da ditadura. Nos anos 80 descobriu sua verdadeira vocação em uma sociedade de mercado moderna: ser representante dos interesses difusos da sociedade contra interesses políticos, corporativos e setoriais.”
O passo seguinte foi se ver como um produto, que tem que responder às expectativas do seu público. A mídia passou a recorrer a departamentos de pesquisa, a leituras imediatistas do que as pesquisas mostravam, a tentar atender as demandas de curto prazo do leitor. E aí se tornou refém do pior censor: ditadura da opinião pública ou, melhor, de atuar passivamente oferecendo ao leitor aquilo que pensa que ele quer.”
“Este é o grande dilema da imprensa de opinião do século 21: atender às expectativas imediatas de seu leitor ou ser uma guardiã dos valores da civilização.”

Um pouco dessa provocante temática permeou os debates da Semana de Jornalismo da FAJORP. Valeu-se principalmente dos relatos dos notáveis jornalistas convidados. Eles puderam, de certa forma, assinalar o peso da individualidade no alargar os limites que o mercado muitas vezes se nos impõe. Ficou claro aos estudantes: essa marca só é possível mediante competência técnica e uma sólida formação cidadã e contemporânea. Tal projeção foi realçada pela recente legitimação da validade do diploma de graduação em Jornalismo nas esferas judiciais.
Tudo isso aumenta significativamente o peso das escolas de jornalismo. Aumenta a nossa responsabilidade.

17.

Por tudo o que representou — e foi escrito acima –, o caso Vladimir Herzog é emblemático para a História recente do País. Para a História do Jornalismo, porém, diria que é um marco e ainda hoje joga luz às discussões de uma série de questões que permanece em foco. A saber:
a) nos últimos 30 anos, foi um dos raros momentos em que o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo desempenhou papel de liderança e aglutinador do interesse de toda a categoria. Sua atuação, comandada por Audálio Dantas, foi vital para a projeção e divulgação da ‘barbarie’ junto à opinião pública.

(Essa liderança, diria, começou a se esboroar com a malsucedida greve de 1979. Por questões políticas/partidárias, os jornalistas se engalfinharam numa luta pelo controle do Sindicato em que todos perdemos.)

b) é fato que a pressão feita, da base (a redação) para a direção dos jornais, foi importante para a divulgação da verdade – Herzog morreu assassinado pelos torturadores. Esta conquista permitiu que se alastrasse para além dos limites do suportável a ação da censura nos jornais.

c) os “patrões” aproveitaram-se dessa brecha para negociarem, com o então ministro da Justiça, Aloísio Falcão, soluções que mais lhe aprouvessem. Numa delas, a família negociou o fim da censura com a demissão do “italiano” que comandava a redação de Veja. O “italiano” em questão era o jornalista Mino Carta.

d) mesmo assim, diria, foi outro raro momento em que empresários dos meios de comunicação e profissionais de imprensa estiveram do mesmo lado, com um inimigo comum: a ditadura. Os primeiros porque vislumbravam um tempo democrático, especialmente bom para a ampliação dos seus negócios. Os segundos, a partir de uma ingênua compreensão de que era função do jornalista “por o dedo na ferida, intervir, salvar a humanidade”.

e) a lembrança e discussão do caso Herzog trazem à tona uma realidade distante das novas gerações – sejam estudantes de jornalismo, sejam profissionais recém-formados. Esta tônica trata das implicações sociais e transformadoras que acarreta o exercício da profissão.

f) hoje o glamour de ser jornalista está em alta – muito provavelmente, a partir da notoriedade que a televisão consagra a quem apareça na telinha, seja apresentando um noticioso, seja como participante de um abominável reality show.

g) talvez por isso os profissionais de imprensa estão mais preocupados com a ascensão social e financeira – nenhum demérito nisso, aliás – do que propriamente exercer as funções crítica e fiscalizadora que todo e qualquer jornalista deve exercer.

Por isso a importância de lembrar Herzog.

17.

Também – e principalmente – é importante lembrar Vlado nesses dias em que o Brasil vive mais uma de suas crises políticas e institucionais.
Política, sim, porque a esperança, em vista aos últimos acontecimentos, deu lugar ao medo e retomamos o velhor bordão drummondiano: “E agora, José?”
A esperança perdeu-se em valdomiros, mensalões, dirceus, correios, valérios e assemelhados.
Institucional, sim. A pecha da corrupção paira ameaçadora sobre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário — e os homens públicos que se situam entre culpados e/ou omissos.

Importante lembrar Vlado porque muitos já esqueceram – ou nunca tiveram notícias – das excrescências que todo Regime arbitrário perpetra onde se instala, com perdas inexoráveis para as camadas mais populares. Também porque nunca é demais reafirmar os valores democráticos e universais.

Importante lembrar Vlado para que possamos reiterar a fé neste País e na sua gente.

Parte 4 – PÓSFACIO

“Você corta um verso, eu escrevo outro” – Pesadelo, Paulo César Pinheiro

18.

No dia 1º de abril 1964, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony convalescia de uma intervenção de apendicite em sua casa no Posto Seis, Rio de Janeiro, quando foi ‘convocado’ pelo poeta Carlos Drummond de Andrade a assistir “as confusas operações que se processavam no Forte de Copacabana”. No dia seguinte, o jornal Correio da Manhã saía às ruas com a crônica “Da Salvação da Pátria”, a primeira de uma série que Cony escreveria sobre sua estupefação diante da nova ordem social, e que seriam reunidas no livro O Ato e O Fato.
A crônica termina assim:

“Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac pára perto do “Six” e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.
Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo.
— É carnaval, papai?
— Não.
— É campeonato do mundo?
— Também não.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.”

19.

Onze anos depois, Herzog não suportou “o gosto amargo”. E pagou com a vida. E o Brasil nunca mais foi o mesmo depois de Herzog.
No dizer de Frei Beto:

“Furaram os olhos da Justiça, mas não lhe ensurdeceram nem lhe apagaram a memória. 30 anos depois, Vladimir Herzog é um cadáver insepulto, subversivo, paradigmático. Tratado como um verme numa dependência policial-militar, figura para sempre na galeria de heróis e mártires brasileiros.”

Parte 5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

20.

MARKUN, Paulo (org.). Vlado. Ed. Brasiliense, São Paulo,1985.
CARTA, Mino. O Castelo de Âmbar. Ed. Record, Rio de Janeiro,2000.
JORDÃO, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog Prisão, Tortura e Morte no Brasil. Ed. Global, São Paulo, 2005.
PEROSA, Lilian M.F. de Lima. Cidadania Proibida. O Caso Herzog Através da Imprensa. Edições Imprensa Oficial e Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. São Paulo, 2001
PILAGALLO, Oscar. O Brasil em Sobressalto 80 Anos de História Contados pela Folha. Ed. PubliFolha, São Paulo, 2002.
GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada O Sacerdote e O Feiticeiro. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2004.
NASSIF, LUÍS. O Jornalismo dos Anos 90. Ed. Futura, São Paulo. 2003.
CONY, CARLOS HEITOR. O Ato e o Fato. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964. Relançado pelo Companhia das Letras. São Paulo, 2004.

Como mataram Herzog. Revista Aventuras na História. Ed. Abril, São Paulo, Outubro 2005.
Vlado, 30 anos depois A história não pode ser esquecida. Jornal dos Jornalistas / Unidade. Órgão mensal do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo. Número 279. Outubro, 2005.
“Já dei mil entrevistas sobre o Vlado”. Entrevista com Paulo Egydio Martins. Folha de S.Paulo, Página E2, 3 de outubro de 2005.
FREI BETTO. Herzog, memória subversiva. Artigo publicado no site Comunique-se (www.comunique-se.com.br) em 25 de outubro de 2005.

(1) Semana de Jornalismo da Faculdade de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Metodista de São Paulo, 2005.
(2) O Caso Herzog. Programa Linha Direta. Rede Globo, 2004.
(3) Programa Roda Viva. Entrevista com Mino Carta, 2001.
(4) Catedral, Um silêncio em memória a Herzog. Vídeo documentário. Direção: Marcos Carvalho Barbosa. Roteiro e produção: Débora Roberta Ferreira dos Santos, Deise da Cruz Silva, Fernando César Batista de Almeida, Juliana Ambold, Marcela Correia de Oliveira, Marcos Carvalho Barbosa, Mayra Araujo Monteiro, Silas Teodoro de Castro Shimoda. Orientação: Valdir Bofetti. Instituto Municipal de São Caetano do Sul – IMES. 2005.
(5) A Presença de Herzog. TV Cultura, 2005.

* Revista Estudos de Jornalismo e Relações Públicas da Faculdade de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Metodista de São Paulo. Ano 3. Número 6.

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