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O idioma das árvores

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Foto: Arquivo Pessoal

Suspeito que sejamos contemporâneos, vindos dos longínquos anos 50.

Ele aparenta ser alguns anos mais novo que eu.

Estamos largados ao sol da manhã, no dolce far niente, no banco da praça da pacata cidade interiorana.

Acabamos de nos conhecer.

Não houve a protocolar apresentação. Apenas a conversa ligeira. Sem rumo e sem prumo no deleite mútuo dos minutos vadios.

Falamos dos dias de chuvas que precederam o ensolarado domingo e a radiante segunda que preguiçosamente podemos agora desfrutar.

“Vai ser um outono daqueles, quente pra caramba. Frio mesmo só chega lá pra julho, agosto.”

Ele me parece ser homem do campo. De terras e plantações. Tem jeitão matuto, sotaque arrastado, típico dessas bandas, os grotões do Vale do Paraíba.

Não entro em detalhes sobre o que faz ou deixa de fazer. De onde vem, pra onde vai.

Entendo, pela conversa, que meu interlocutor tem as manhas de perscrutar os céus, as nuvens e as variações climáticas.

Me surpreende quando invade as delicadas nuances da alma humana e da natureza.

“Eu queria aprender o idioma das árvores.

Saber as canções do vento nas folhas da tarde.

Eu queria apalpar os perfumes do sol.”

Do nada, o caboclo, de ares rudes, se põe a falar de poesia.

Diz com naturalidade os versos acima, do poeta matogrossense Manoel de Barros (1916/2014).

Lembra no instante seguinte a Cora Coralina (1889/1985), poetisa de Goiás:

Minhas mãos doceiras…
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
ajudar, unir e abençoar
“.

Faz até pausa dramática.

Interpreta.

Olha ao redor e diz pausadamente que ambos – Manoel e Cora -, como ele próprio, amavam profundamente os rincões onde nasceram e viveram.

Faz uma ressalva, porém.

Compara a luminosa manhã de hoje com versos eruditos (que não guardei) de Dante “cujo poema não passou de um sonho”.

Imaginem o meu espanto.

Não estou acostumado a divagações e platitudes.

Sou um urbanoide, estou por aqui de passagem, nem sei o que lhe responder.

Decididamente a manhã de sol a pino e o cenário, enfeitado pelo verde das irregulares montanhas da Serra da Bocaina, sejam mesmo inspiradores.

Inquietam-me apenas os momentos de silêncio que o homem faz de quando em quando.

Imagino cá comigo e temo que são possíveis ‘deixas’ para que eu também mostre minha verve literária.

Que é um tiquinho além do nada.

Prefiro ficar na minha.

Esboço um sorriso, assumo ares de reflexão.

Ufa!

Ele nada me pergunta.

Espera a Casa Lotérica abrir às 9 em ponto, despede-se com um ‘até breve’ e foi lá fazer sua fézinha.

Acho que não o verei tão cedo. Volto na terça para a voracidade cinza da cidade-grande.

Gostei do encontro. Dou vivas ao bom Acaso.

Concluo por conta e risco que:

Andar pela vida é poetar e ter o dom de fazer amigos.

Assim nunca estaremos ao desamparo.

No mais, sinto a leve brisa que sacode as folhas da frondosa árvore que me sombreia e, marotamente, me faz lembrar, num sussurro, outro pensamento do inesquecível Manoel de Barros:

“Tenho uma confissão a fazer: noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira“.

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