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Profissão e fé

O jornalista não deve temer chegar ao fundo do poço na busca dos fatos, da verdade. É preciso encarar de frente todos os sacrifícios que esta verdade impõe. Não é muito fácil. Mas, se não for assim, é melhor procurar outra profissão…

A voz convicta do professor de jornalismo não deixa transparecer qualquer rancor. Fala naturalmente ao exigir mais seriedade. Um grupo de alunos ameaçou reclamar. Todos estão convocados a trocar um provável fim-de-semana ensolarado pela presença obrigatória na elaboração de um noticiário sobre os problemas de transporte na cidade universitária. Não há formalismos, nem
pose de “dono-da-verdade”. Apenas deixa bem nítido que ele não está ali só de passagem.

– Se não for assim, é melhor procurar outra profissão…

Semanas depois, assistindo ao espetáculo “Brasileiro – Profissão Esperança”, percebe-se os atores em cena – Paulo Gracindo e a cantora Clara Nunes – visivelmente emocionados. Há um clima de profunda tristeza e indignação. Fim da sessão, aplausos. Clara não contém o choro. Gracindo dá a notícia.

25 de outubro de 1975. O jornalista e professor Vladimir Herzog morreu tragicamente nas dependências do DÓI-CODI de São Paulo. Silêncio. Tristeza e indignação. E a história deste País começou a mudar.

– É preciso encarar de frente todos os sacrifícios.

São os tempos negros do arbítrio. O Governo Médici fez “escola”. E mesmo o presidente Ernesto Geisel encontra sérias dificuldades para conter os “abusos” em São Paulo. Organismos militares e para-militares agem desbravadamente em nome do que entendem “segurança nacional”.

A morte de Vlado é a primeira arbitrariedade a escapulir da ação dos censores oficiais, a primeira notícia a “passar” ao brasileiro médio a noção exata de que o País está subjugado à nefasta ditadura. Apesar da aparente tranquilidade. Apesar da propaganda massificadora. Apesar do tal “milagre econômico”. Apesar de tudo, há muito o que ser feito.

Os dias que seguem à morte do jornalista são de muita movimentação. E apreensão. Políticos do MDB, jornalistas, artistas, estudantes, líderes sindicais e representantes de entidades civis reúnem-se na Praça da Sé para um culto litúrgico em memória de Vlado. O arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, recebe ameaças e recomendações para os riscos da manifestação. São Paulo é “tomada” por comandos que, espalhados em pontos estratégicos, interceptam a quem bem entendem.

Milhares chegam à Catedral e participam do ato (e são filmados pelos agentes da repressão).

O tempo passa e atravessa a avenida. O fruto cresce…

Dez anos depois, o Brasil vive a expectativa da Nova República. A Nação ainda não tem tudo o que merece. Os desmandos dos donos do Poder foram devastadores, implacáveis. Mas, há que se reconhecer, conseguimos avanços indiscutíveis. As greves do ABC em 78, a eleição dos governadores em 82, as Diretas-já em 84, a vitória de Tancredo Neves – enfim, a Nova República.

Estamos longe do ideal, mas, já se andou um “bocado”. O empenho e a disposição da nossa gente asseguram vida longa para os ideais de Vlado
e de tantos outros que desapareceram vítimas da repressão, da ignomínia.

É sempre bom ter em mente a importância do momento histórico que vivemos. Nossa tênue democracia depende – e muito – da participação de todos. Não pode haver vacilo, nem retrocesso. Só assim serão possíveis novas conquistas. Só assim, com a participação de todos – repito -, será possível transformar em realidade o sonho de um Brasil para todos os brasileiros.

•Texto que escrevi em 25 de outubro de 1.985 para a coluna “Caro Leitor” e que posteriormente foi publicado no meu livro “Às Margens Plácidas do Ipiranga”, lançado em 1997.

•Por solicitação da Comissão Nacional da Verdade, o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou ontem a retificação do atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog, morto em outubro de 1975, nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. A versão de que o jornalista suicidou-se será alterada e, no documento, constará que sua morte “decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do 2º Exército de São Paulo. A Justiça que tarda falha…

•O blog completa hoje seis anos de vida… Agradeço a atenção de meus amáveis cinco ou seis leitores que insistem em me acompanhar neste humilde espaço.