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A história de Serena

Chamava-se Serena.

Para muitos da velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor, no entanto, o nome de Vulcão Enrustido lhe fosse bem mais apropriado.

Era elegante à sua maneira, de passos duros e porte altivo (sem ser esnobe). Tinha uma beleza plácida, dessas que não despertam amores à primeira vista, mas aos poucos cativam aqueles que a rodeiam.

II.

Seria exagero dizer que todos, no jornal, cobiçavam a atenção de Serena. Seu Elízio, o motorista, por exemplo, lhe era indiferente.

"Não faz meu tipo", dizia.

O pessoal da Distribuição, que só trabalhava às sextas-feiras, dia em que a edição circulava, e não a conhecia, também. De resto, do porteiro à turma da Administração, só havia elogios e querências em relação à moça.

Entre os rapazes e os senhores da Redação, digamos que Serena era uma unanimidade.

III.

Acontece que a jovem tinha lá seus encantos (indiscutíveis) e outros tantos insondáveis mistérios.

Ela trabalhava no primeiro horário da Digitação, um departamento que existiu nos jornais em tempos idos. Era de poucas palavras, tímidos sorrisos, noiva e, creiam, profundamente religiosa.

De uma doutrina que proibia todo e qualquer contato afetivo antes que se efetivassem as bodas matrimoniais.

Alíás, casamento, para Serena, era “boda matrimonial”.

Formal, e linda.

IV.

Tão rigorosos eram tais preceitos que as pessoas, na Redação e arredores, comentavam da pureza e da castidade da moça, sempre em tom de desafio, e alguma maldade. Diziam que Serena e o felizardo noivo nunca foram além do breve enlaçar de mãos.

Havia quem duvidasse, óbvio.

O que só aumentava o tom mirabolante que inventavam para as possíveis aventuras do casal. E da retidão com que ambos procediam, fosse qual fosse a situação em que se encontrassem.

V.

Como sempre acontece nessas ocasiões, as versões superam fantasiosamente os fatos. Nunca ninguém ouviu uma confissão, por menor que fosse, de Serena sobre sua intimidade e a de seu parceiro. Mas, para aqueles debilóides da Redação (entre os quais me incluo), não faltavam roteiros de puro erotismo.

O mais célebre deles – não lembro exatamente quem o criou, mas juro que eu não fui – descrevia o casal a sós, em uma suíte, em lugar incerto e não sabido. Ambos nus, a se olhar, em silêncio absoluto, tensionado pelo desejo e pela sedução.

Ao cabo do período de praxe, vestiam suas roupas – e saíam, diziam, se amando mais e mais.

VI.

Vou lhes dizer com sinceridade.

Não achava graça nenhuma nessa história, nem nas que, a partir dela, se sucediam. Com um tempero, digamos, bem mais caliente. O pessoal da redação era bem criativo em tais circunstâncias.

Pobre de quem caísse na roda das brincadeiras e zoações.

Aliás, tínhamos uma praxe de nunca estar entre os primeiros a deixar a turma. Sabíamos de antemão que, em nossa ausência, seríamos o alvo das gozações.

Registre-se que, não raras vezes, tamanhos eram os detalhes com que recheavam a trama que, por fim, essas invenções ganhavam contornos de verdades absolutas e, como dizia aquele ministro, imexíveis.

Particularmente, não achava justo com a elegância de Serena.

VII.

Nunca soube ao certo se Serena tomou conhecimento desses desafortunados comentários.

Ela sempre se manteve distante do diz-que-diz. Indiferente – e bela – professava aos quatro quantos, e quando necessário, que dedicava toda sua vida aos ditames religiosos, à doutrina, seu bem maior.

Certa manhã, soubemos com o pessoal do RH que a misteriosa Serena demitira-se, pois pensava em casar breve, breve.

E precisava de tempo para preparar a cerimônia.

Mais do que normal. A rotina do jornal era aquela mesmo. Um entra e sai danado de gente.

VIII.

Não quero terminar a crônica pousando de único santo, não.

Preciso lhes dizer que outro a não concordar com o malfadado falatório era o Escova, o nobre Escova, solerte repórter, tido e havido como o Dom Juan das Quebradas do Sacomã, grande Escova.

Ele mesmo, sempre tão cheio de histórias e lero-leros, teve um procedimento de impecável discrição quando o assunto Serena entrava na pauta do dia.

Aliás, o amigo vivia um momento diferente àquela época.

Chegava antes do que todo mundo na redação. Não nos acompanhava mais em nossas esticadas noites adentro.

Havia até quem o chamasse, em tom de provocação, de Escova, o Puro.

IX.

Alguns diziam que ele havia sido enquadrado pela patroa, a Dona Encrenca, tamanho era o zelo com que se comportava.

Para completar o quadro, era comum ‘os perdidos’ de Escova em algumas tardes que, segundo ele argumentava para a chefia, eram necessários para desenvolver uma pauta especial sobre o avanço das novas e excêntricas seitas no Brasil, especialmente na região do Grande Ipiranga.

Enfim…

X.

Dias atrás, encontrei-me com Escova em um daqueles botecos chinfrins do Sacomã para alguns bebericos e, inevitável, reverenciarmos os velhos tempos.

Não sei o porquê lhe perguntei sobre a tal reportagem que, fiz questão de salientar, por desmazelo meu, acabei por não lê-la, e sequer lembro de vê-la impressa.

Escova disse que eu estava delirando.

Nunca fizera reportagem com tema semelhante. Quando muito colaborou, gratuitamente e a meu pedido com O Carpinteiro, jornal da Paróquia São José, que editei ao lado do padre Brito por dois ou três anos.

XI.

O Carpinteiro foi uma gratificante experiência jornalística.

O jornal mensal chegou à tiragem de 100 mil exemplares. Era um prazer fazê-lo ao lado de amigos caros como o próprio Escova, o padre Brito, o Zezinho, a Fernandinha, o Anísio, o Alexandre, a saudosa Rita, entre outros. Mas, não era sobre esse momento que me referia.

“Falo da tal reportagem sobre as tais seitas emergentes que você jurou existir às dezenas na periferia de São Paulo, especialmente nas vilas e jardins que cercam o Ipirangão velho de guerra”, insisti.

Escova continuou balançando negativamente a cabeça em sinal de desaprovação.

Até eu comecei a duvidar do que eu próprio dizia.

XII.

Resolvi forçar a memória do amigo, dando o contexto da história toda:

“Lembra-se que você chegava cedo na redação para adiantar as matérias do dia, e saía quase todas as tardes atrás dessa bendita pauta. Nem para as noitadas com a gente você ia. Ficava preparando as tais entrevistas.”

Escova continuou negando:

– De onde você tirou isso, parceiro. Justo eu, o grande Dom Juan das Quebradas, o Tal e o Qual, me envolvendo com esses carolas. Sem chance.

XIII.

Ao ouvi-lo citar, orgulhoso, o velho codinome de guerra, me veio uma inspiração.

Caiu a ficha, e resolvi jogar o ‘verde’:

“Foi no tempo da Serena, lembra? Aquela moça linda, toda pura, que o pessoal maldava que ela não transava nem com o noivo, e que pertencia a uma dessas religiões rigorosíssimas no quesito sexo antes do casamento. Lembra-se dela?”

Fez-se um silêncio comovedor.

Tive a impressão que todo o boteco entendeu o que de fato acontecera.

Que pauta que nada.

Por Serena, a bela e casta, o cara madrugava na redação e saía, mais ou menos, no horário que ela também se ia. Por Serena, a bela e casta, a ausência das nossas noites ruidosas quando sempre se bebia demais, se falava demais. Não havia segredos naquela roda.

XIV.

Escova respirou fundo. Viajou para os confins da alma.

Nada me respondeu.

Nem precisaria.

Seus olhos retomaram o brilho dos tempos idos e vividos.

Diria até – convicta e SERENAmente, muito bem vividos…