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A vida não pede licença

Até parece aqueles velhos causos que o grande Stanislaw tão bem relatava em suas crônicas diárias – e que eram “a cara” do Brasil nos anos 60. No entanto, o ocorrido se deu aqui mesmo em São Paulo, em um dos nossos valorosos bairros periféricos que não sou louco de nominar porque não quero confusão pro meu lado. Conto o milagre, mas não deduro quem são os santos (que, aliás, não há nenhum nessa historieta). Vou trocar também o nome de três dos quatro personagens. De verdadeiro mesmo, fica o Manoel, que é o dono da padaria e, como tal, dificilmente teria outro nome. Mesmo se chamasse Afonso, para os mais abusados da freguesia seria sempre o Seu Mané.

Acontece que o Seu Mané vivia um drama. Tinha uma mulher que não era fácil e uma ajudante de cozinha, toda roliça e jeitosa, que se fazia de difícil.

Dona Luzia, a esposa, não dava mole para o marido. Não sei se desde sempre cultivava o estilo “buzinaço” ou se foi a presença de Jacira, a tentação, que lhe acirrou os ânimos e a caça impiedosa a tudo o que o pobre Manoel fazia e/ou falava.

– Assim não dá. Seu Mané tá lascado, desse jeito. É um esporro atrás do outro. A Dona Encrenca não dá folga pro coitado.

Com licença, apresento a vocês, meus queridos cinco ou seis leitores, o Jeremias, o autor da fala acima. Como podem ver, ele já demonstra toda a sua indignação com a situação. Jeremias, vez em quando, qalmoça por lá, mas gosta mesmo de terminar a tarde na padoca. “Só na cervejinha, ôô…” Sente-se à vontade com a rapaziada, bota sua banca, conta suas lorotas e está na bronca com a Dona Luzia.

Não quero tomar partido, longe de mim. Mas, ele tem razão. Dona Luzia trabalha pra caramba, é verdade. Ajuda no que for preciso. Só que, em compensação, não perde uma para esculhambar o simpático Seu Mané (a freguesia gosta dele). Discorda de tudo o que ele diz ou pensa dizer, chama a atenção do pobre (pobre, não; que Seu Mané tá bem de vida) na frente de todo mundo e, não contente, gosta de dizer que, sem ela, a luminosa padaria Flor de Avis iria para o beleléu.

A quem chega pela primeira vez no lugar e não entende as broncas de Dona Luzia, Jeremias se dá ao trabalho de bancar o relações públicas e cuida da imagem e reputação do estabelecimento:

– Digamos que o casal de proprietários está numa fase de tucanos versus petistas, mas experimenta a coxinha de catupiry que é o que há… Logo logo eles se acalmam.

Aos mais chegados, Jeremias dá uma de psicólogo e alardeia o resumo da ópera:

– Ela faz do pobre coitado o seu contraponto com o mundo. No fundo, no fundo, a Dona Luzia, que é uma balzaca ainda no prumo, não está satisfeita com o dia a dia que anda vivendo entre o forno, o fogão, a pia, a farinha e os salgadinhos. Tá mal com ela mesma, dá para entender?

Há quem entenda. Outros, como este humilde escriba, continuam boiando. De real mesmo, é que, feito o diagnóstico, o Jeremias ajeitou o colarinho da camisa Dudalina e resolveu intervir.

– No estilo, meu caro, no estilo…

Ele bolou a seguinte estratégia que lhes conto amanhã, se o dito-cujo não roer a corda.

Aguardem!

PARTE 2

Como ia dizendo no post de ontem, Jeremias, o interventor sentimental, deu trato às ideias – e não demorou para ir da teoria à prática. Foi conversar com o ‘portuga’ na delicadeza sobre a situação que o espinafrado vivia e como o amigo Mané poderia se livrar da incomoda perseguição da patroa (até hoje não entendo porque o pessoal adora chamar esposa de patroa, enfim…).

Podia ser um grande equívoco, mas não custaria tentar.

Como ‘agitador cultural’ (belo emprego em rapaziada) de um desses Sesc/Senac/Senai da vida (nunca sei ao certo que instituição oferece o quê, a quem, mas sigamos a história), Jeremias sugeriu, assim na base do sem querer querendo, que Dona Luzia se matriculasse em um desses cursos que a nobre instituição oferecia. Havia um pouco de tudo, do prosaico curso de manicure e cabeleireiro até alguns mais sofisticados como design de interiores e tal.

A primeira dama da padoca Flor de Avis só precisaria escolher o que mais lhe interessasse. De sua parte, o seu Mané deveria aliviar a carga de trabalho da mesma e lhe dar algumas horas de folga para que ela pudesse respirar novos ares e buscar novos horizontes.

– Quem sabe assim ela não se distraia e deixe de pegar tanto no seu pé, quem sabe?

“Quem sabe?”, ponderou Seu Mané, que era do tipo caladão, mas não era bobo, nem nada, e pensou logo nas horas livres que teria sem o buzinaço na orelha e, principalmente, na possibilidade de ficar – sozinho, sem policiamento preventivo – perto de Jacira, aquela tetéia.

Topou no ato.

– Não sei como lhe agradecer, ó gajo.

Não foi preciso editorial em O Estado, nem matéria de capa na Veja para convencer Dona Luzia que elazinha estava trabalhando demais e que era hora de cuidar um pouco mais dela mesma.

– Uma reciclagem sempre vai bem, madama.

Não queria dizer, mas digo: a observação do Jeremias deixou o Seu Mané ressabiado. Mas, convenhamos, aquela lindeza da Jacira merecia correr qualquer risco.

– Pode deixar, nem se preocupe. Luzia, querida, que, por aqui, eu me viro e faço os funcionários trabalharem um bocadinho mais e tudo vai continuar nos conformes.

Segura o facho, Mané. Devagar com o andor que a santa é de barro e, mesmo de casa, Dona Luzia pode desconfiar…

PARTE 3

Meus amáveis cinco ou seis leitores podem (e devem) me perguntar, como autor desse amontoado de letrinhas, o que motivou Jeremias a tamanho gesto de amizade – e por que não? – de solidariedade desinteressada?

Aliás, para ser sincero, os frequentadores da magnânima Flor de Avis também faziam a mesma pergunta a si mesmo e a seus pares.

Farei minha a inquietação da rapaziada:

“O que deu no malandro? De graça, de bobeira é que não foi.”

É bem verdade que se levantaram inúmeras hipóteses, mil e uma possibilidades, mas o fato é que nada se apurou que comprometesse, em primeira instância, o enigmático Jeremias e tudo ficou no achismo e no disse-que-me-disse.

Vocês sabem: o que seria dos botecos sem a especulação da vida alheia?

Até porque – e aqui cabe o destaque e o parágrafo – Dona Luzia surpreendeu a todos, especialmente ao maridão, quando anunciou, com ares de encantamento, o curso que escolhera para dedicar-se nos próximos três meses, com possibilidade de um segundo módulo com o mesmo período de aprendizagem. Dona Luzia, recatada e trabalhadora, matriculou-se no curso de, acreditem!, neurolinguística.

– Jesuisss, mas que diabus é isso???

A contraditória exclamação do Seu Mané se perdeu no vácuo e ficou sem resposta. Dona Luzia se mostrou animadíssima e, pela primeira vez em anos, não retrucou severamente ao que disse o marido.

Jeremias sorriu maroto ao ver a cena.

Os dotes de Jacira a batucar na imaginação do Seu Mané, as possibilidades que lhe acenava a ausência de Dona Luzia, o fim das broncas e outras cositas mais – tudo isso fez o homem não insistir na questão e se conformar com os novos tempos que se projetavam:

“Ora, pois, é importante que se distraia” – confabulou para si mesmo.

Ninguém, em sã consciência, poderia avaliar a transformação que aquela decisão acarretaria na vida de nossos quatro personagens.

Um desses sábios que são assíduos em botecos, bares, padarias e ‘sujinhos’ e se disfarçam em ‘zé povinho’ ainda tentou alertar:

– Se cuida, Manoelino, se cuida. As mulheres mudam e se esquecem de nos avisar.

PARTE 4

Juro que, ao iniciar o relato da intervenção artística/sentimental de Jeremias, não me dei conta que me enroscaria em atos e fatos (salve grande Cony!) que fizesse tal narrativa parecer uma história sem fim.

“Tá se achando autor de novela é, bebé? Tu não ganha pra isso, não” – a observação, como meus amáveis leitores devem saber, é de Escova, aquele que se intitula ombudsman do nosso modesto Blog e posso lhes afiançar nada tem a ver com o Jeremias, embora, em muitos momentos, um me lembre o outro.

Tento me defender:

– Série, Escova. A história acabou por virar uma série.

– Nada disso – retruca ele. – É novela, e das antigas, por que tu já virou o Cabo da Boa Esperança.

Cabo da Boa Esperança?

Nem eu me lembrava dessa!

Enfim…

Sigamos com a nossa história que, na verdade, é o que nos interessa e nos cabe.

(…)

Não foi necessário mais do que duas ou três aulas para que “a linda balzaquiana” (no parecer avalizado de Jeremias) recuperasse um brilho no olhar de há muito não visto lá pelos lados da Flor de Avis.

Digamos que ficou mais livre, leve e solta. Deu uma repaginada no figurino e, dias depois, apareceu com um novo corte de cabelo todo cheio de bossas e repiques.

Lembram aquele sábio bebum que encerrou o post de ontem? Pois bem, leitores, ele fez outra observação, preocupante para o amigo, Seu Manoel, o marido desatento.

– Mulher não corta o cabelo em vão, meu camarada. Prepare-se que vem vento forte pela frente, prenúncio de tempestade.

Na esteira dessas mudanças – em prol e a partir da neurolinguística que tanto a encantou -, Luzia (“esqueçam essa tristeza de “dona”, por favor) passou a diminuir os expedientes na padoca. Até que desapareceu de vez. Deixou como legado o seguinte recado ao desconsolado Mané:

– Toma que o negócio é seu! Faz um remanejamento de cargos e funções, racionaliza os custos, programe-se que agora quero ter uma carreira própria.

Em resumo, vire-se, Mané!

O que o malemolente Jeremias, o interventor, pensa disso tudo?

Bem, veremos no post de amanhã. O que posso lhes antecipar é que o aparvalhado Mané esqueceu a linda Jacira e as possíveis investidas e foi pedir um aconselhamento a quem?

Ao Jeremias.

No parecer do sábio bebum, foi um gesto tão temerário quanto aquele dono do galinheiro que solicitou à raposa orientações para cuidar das galinhas.

(Sem insinuações, por favor!)

Parte 5

Não sou de dar pitacos na vida alheia.

Não é minha praia, nem me sinto à vontade.

Veja bem que…

Com os argumentos acima, o malaco Jeremias bem que tentou, mas não conseguiu escapar ao desabafo do inconformado Seu Mané.

O amigo abriu a comporta das reclamações, sem qualquer cerimônia: estava trabalhando demais, a mulher era o seu braço direito no dia a dia da padoca, preocupava-se também com essas mudanças todas que Dona Luzia estava vivendo, ela agora parecia um tanto avoada, não ligava mais para ele, para os negócios, para a casa… Parecia outra pessoa, nunca ficara tanto tempo, ao longo desses quase 20 anos de casamento, sem ralhar com ele.

Deus não lhes dera um filho, é bem verdade, Mas, tocavam suas vidas harmoniosamente, sem grandes problemas. Apesar dos costumeiros arranca-rabos (ela entrava com o “arranca” e ele…, bem deixa pra lá…), eram felizes – e se bastavam.

– Agora, amigo Jeremias, sinto falta até dos esculachos que ela me dava a cada cinco minutos. Eram uma prova de carinho. Me sinto abandonado.

Jeremias se fez de apiedado com a situação. Assumiu ares de isenção e justiça, para dizer que não era do seu feitio se intrometer nessas desavenças entre marido e mulher.

– Diz a sabedoria popular que em briga de casal não se deve…

Seu Manoel não esperou que ele terminasse a frase, indignou-se;

– Ó gajo, foste tu que vieste com essa conversa de curso, de que ela precisava mudar de ares, que andava estressada. Não lembras, não?

– Mané, amigo de longa a data, fiz isso pensando no seu próprio bem. Nas aporrinhações diárias que sofria. Você sofria um bullying lascado. Sabe o que é isso, né? Também como iria prever que a Lu fosse mudar tanto assim – e como mudou! Que saúde!

– Lu!!! Lu!!!

Direi apenas que bem mais que vocês e eu, Seu Mané foi atropelado pela aparente intimidade de Jeremias com a sua digníssima senhora.

– Luzia, Dona Luzia, olha o respeito, ó gajo – indignou-se o padeiro-mor diante de um Jeremias apatetado diante do vacilo.

No contexto da incômoda situação, Jeremias só pôde se desculpar e programar uma saída à francesa.

– Aonde vai, homem? Não vai almoçar como de costume?

– Pois é, amigo… Tenho um almoço de negócios.

E lá se foi Jeremias, passo miúdo, apressado, louco para fugir dali.

Não, meus caros e amáveis leitores, o sábio bebum não estava ali naquele momento para registrar a cena. Mas, se estivesse, estou certo que diria algo no gênero.

“Esse cara pode não ser mordomo, mas tem toda pinta de suspeito.”

PARTE 6

Escova – sempre ele – me pergunta se o bebum do boteco não repete, em nosso enredo, o papel do cego no cordel nordestino ou do ermitão da montanha como personagem mediador, digamos, da nossa história sem fim.

Não havia pensado nisso, a princípio. Mas, concordo em parte com a observação do auto-proclamado ombudsman do nosso humilde Blog. Essas três ilustres figuras revelam uma percepção antecipada dos fatos que se sucedem. Mostram uma consciência crítica desta ou daquela ação, desta ou daquela fala.

Achei divertida a comparação, mas reitero ao Escova, experiente freqüentador de padocas, botecos, bares e afins, que todo estabelecimento desse gênero que se preze (especialmente o das antigas, que preservam as paredes ladrilhadas e o balcão de mármore ou fórmica) tem como figura impoluta um personagem assim.

Naqueles bons e velhos tempos do ‘sujinho’ da rua Bom Pastor, onde se exibe imponente a Estação Sacomã do Metrô, o grande e sábio guru da nossa turma era o saudoso Nasci.

Enfim…

Deixemos de lero-lero e voltemos à nossa história que, no capítulo de ontem (ui!), terminou com sérias suspeitas sobre os procedimentos do Jeremias. Lembram?

Para ser bem sincero, o Seu Mané não ouviu o comentário do sábio-bebum, nem outro qualquer. Passou o dia injuriado com a realidade, a esquisita realidade, de seus dias.

A pimpolha Jacira já não era motivo de suas cobiças, embora continuasse “um chuchuzinho”. E cada dia mais sorridente para o seu lado. Na administração do forno e do fogão, no entanto, deixava a desejar – o que só fazia aumentar a “saudade” da amada Luzia.

Toda vez que atrasava a fornada de pão, quando desandava a massa dos salgados ou havia um desacerto no cardápio do almoço, era um “ai Jesus” para o desalentado Seu Mané. Tudo isso mais o espectro da crise que aflige o país.

O amigo temia pelo bom nome do seu patrimônio maior, a Flor de Avis e, lá no fundinho d’alma, preocupava-se mais, bem mais, com o abandono a que Luzia lhe deixara.

Não gostou nada quando um rapazote desconhecido, mas com pinta de sacana, pediu uma cerveja e se pôs a cantarolar baixinho:

“Malandro é malandro
Mané é Mané
Podes crer que é”

Pela primeira vez em tantos e tantos anos de padaria, pensou em encerrar o expediente antes da hora e voltar a casa para esclarecer algumas situações.

– Malandro é malandro, Mané é Mané, ora pois… Será que esse fedelho está com gozação para cima de mim?

PARTE 7

Ufa!

Fim do expediente.

Seu Mané baixou as portas de aço, como nunca dantes em sua vida. Aliviado, ansioso.

Queria chegar logo em casa. Até notou que Jacira, a tal e qual, insistiu em ficar além do tempo normal e, àquela hora da noite, naquelas circunstâncias, se ele lhe oferecesse uma carona, seria difícil segurar. A menina estava lhe dando um mole.

Ficou tentado, mas segurou a onda. Naquele dia, não. Estava ansioso, como disse. Ansioso, não.

Amargurado. Queria esclarecer aquela situação de uma vez por toda.

Vez ou outra, lembrava a intimidade com que o sacana do Jeremias lhe tratara hoje cedo.

“Lu, Lu… Que intimidade do malandro com a minha patroa!”, pensava e se entristecia.

Sabem aquela velha canção da Maysa – mesmo os mais jovens devem saber, porque andou tocando aí numa minissérie da globo – que diz “meu mundo caiu”?

Pois então, não quero assustá-los, não, leitores. Mas, lhes antecipo que serviria como uma boa trilha sonora para a recepção que o nosso Mané teve em casa assim que abriu a porta.

Dona Luzia lhe esperava para reviver os bons tempos. Os bons tempos dos esculachos na padaria.

Ela não deu sequer boa noite, e lhe sapecou uma saraivada de impropérios que deixou a alma e o coração tal e qual aquele famoso queijo suiço, repleto de buracos.

Para piorar, a pauleira terminou com o seguinte e bandeiroso recado:

– E nunca mais ouse incomodar o Jejê com perguntas sobre a minha vida. O coitadinho perdeu até fome. Tá me ouvindo, Mané? Nunca mais, ouviu?

(…)

Confesso que não sei ao certo o que dizer aos meus amáveis cinco ou seis leitores.

Sinto que devo continuar a história, é meu dever. Mas, imagino que, assim como eu, vocês também estão um tanto – ou muito – decepcionados com Dona Luzia, Luzia ou Lu, que seja!

Não é de minha competência julgá-la.

Por isso, sigo relatando o que pensou o Seu Mané:

(Sei o que pensou, óbvio, porque sou o autor dessa historieta – e todo autor que se preze tem acesso à ‘caixa preta’ dos personagens).

“Quer dizer que, enquanto eu trabalho duro para tocar os negócios do estabelecimento, me esfalfo atrás do balcão, a minha Luzia fica de papinho furado com aquele vagabundo, aquele salafrário, aquele…”

Bem, bem paremos por aqui.

O pensamento do Seu Mané continuou bem mais prolixo e, digamos, contundente. No entanto, e de forma até surpreendente, nada disse. Não pediu explicações. Sentiu uma tonteira, uma ardência no peito, não estava entendendo nada, mas, naquele átimo de segundo, teve a compreensão exata de tudo que estava se passando.

Deu meia-volta – e saiu.

PARTE 8

Vida que segue, meus caros.

Não é exagero dizer que nossa história só não teve um final trágico por que, entendamos ou não, Seu Manoel revelou-se um manso – quer dizer, um cara pacífico, minimamente tranquilo, a ponto de preferir, mesmo em desatino, chorar suas magoas num quarto do apart-hotel do que partir para o bate-boca ou algo pior.

Quem nada entendeu foi Dona Luzia, a Luzia ou a Lu, como queiram.

– O que deu no homem?

Andava tão envolvida com as novas conquistas que mal se deu conta de que não era mais quem sempre foi.

Estava em outra enquanto o marido continuava na mesma. A vidinha de sempre. De casa para a padaria, da padaria para casa. Vidinha que ela própria levou por anos e anos a fio, mas que, talvez já não lhe bastasse.

Horrorizou-se com a possibilidade de voltar àquela lida de forno, fogão & Cia.
Passava 14, 16 horas por dia ali. De segunda a segunda. Dia livre só no Natal e no dia 1º de janeiro.

Tanta coisa pra se viver mundo afora.

Não queria se mostrar injusta. Nem relegar a vida que levou.

Teve consciência que estava em uma encruzilhada.

É muito provável que o marido não entendesse a nova fase.

Talvez fosse bom conversar com a professora de neurolinguística. Antes, porém, iria procurar Jeremias, o Jejê, para que ele lhe buscasse notícias do Manoel.

“Em tantos e tantos de convivência, nunca vi o Mané tão atarantado pra me largar falando sozinha”.

(…)

Antes de se aboletar em um apart-hotel, seu Mané vagou de carro pelas ruas da cidade.

Não tinha um destino certo.

Também não conseguia pensar em nada.

Estava em choque.

Aquela mulher a sua frente, falando, falando, falando…

Chamando um estranho por apelido, Jejê, Jejê…

Perdera o controle.

Aquela mulher não podia ser a sua Luzia.

Talvez não fosse mesmo…

Talvez ele também não fosse mais o mesmo.

(…)

Já devidamente hospedado, Seu Mané derrubou uma garrafa de vinho que havia no frigobar e apagou.

Dormiu o sono dos inocentes.

Parte 9

Alguém me chama a atenção para o final do capítulo anterior.

“Dormiu o sono dos inocentes”.

Seu Mané não é tão inocente assim.

O leitor tem lá suas razões. Até porque no mundo de hoje até as crianças brincam de enganar.

De qualquer forma, minha intenção com a frase pretendeu mostrar que o ”portuga”, em meio a tamanho imbróglio pessoal e profissional, dormiu pesado, profundo.

Tanto que os funcionários da impávida Flor de Avis estranharam a ausência da chefia assim que chegaram para o expediente do dia.

Nunca acontecera antes.

Por sorte, Jacira possuía uma chave reserva “para qualquer eventualidade” e, ao cabo de 45 minutos, tomou a frente e, para espanto geral, de seus pares e da freguesia, deu ordem ao padeiro que a ajudasse a abrir o estabelecimento e agilizasse a primeira fornada de pão do dia e toda a rotina de atendimento.

Houve quem comentasse:

– Que abusada!

Outros mais maledicentes foram para o inevitável:

– Já está se achando a primeira dama da padaria.

– É questão de tempo, disse outro.

Bem, meus caros cinco ou seis leitores, nem sei ao certo o que lhes dizer.

A vida não pede licença.

A vida não pede desculpa.

Não há nota de rodapé ou anexo que explique, lá na frente, quando começa e quando termina uma história de amor.

Antes que o nó se desate, acho importante registrar que caminhamos (ufa!) para o fim da nossa narrativa sobre as venturas e as desventuras do casal Seu Mané e Luzia.

Peço a vocês, amigos, que me desculpem, mas não darei detalhes, minúcias, meandros sobre as três ou quatro conversas que houve entre eles para acertar os finalmentes.

São conversas difíceis, concordam? Que só interessam aos dois personagens.

O certo é que o quase ex-marido não teve coragem para fazer a clássica pergunta entre os enganados:

– Existe outro homem?

Vai que é ela diz sim, é ou não é? A dor é mais aguda. Melhor fingir que não sabe.

Também Luzia não tocou no assunto que, a bem da verdade, parecia não existir – ao menos até aquele momento.

Ela queria mesmo é cair no mundo e, nessa nova fase, assim como ela virou Lu era compreensível que adotasse o diminutivo carinhoso para todos que estivessem ao redor. Jeremias virou Jejê, a comadre Maria se transformou em Má, o sobrinho Ferdinando em Nando e a professora de neurolinguística (a base ou a desculpa para tantas mudanças) era simplesmente “a prô”.

O único que ficou fora dessa lista – que ironia! – foi o maridão. Ele continuou sendo Manoel. O que, convenhamos, era sintomático. Ele não fazia parte dos planos futuros de Lu.

PARTE 10

“O tempo não para no porto

Não apita na curva

Não espera ninguém”

(Reginaldo Lessa)

Nessa toada do efêmero, o que era previsto aconteceu.

Seu Mané e dona Luzia seguiram cada qual o próprio destino.

Indagado a respeito, Jeremias, tido e havido no bairro como “o interventor”, foi cirúrgico no parecer:

– Já não eram as mesmas pessoas. É natural que cada um siga o seu caminho.

Jurou de pés juntos que nada tinha a ver com a separação:

– O clima na padaria estava pesado. Só dei uma sugestão.

A linda Jacira, empossada nas funções de braço direito e esquerdo do Seu Mané, tomou partido – e nem poderia ser diferente:

-Não sei como tem mulher que abandona um homão desses!

O sábio-bebum preferia não se pronunciar:

– Vai que eles voltam amanhã ou depois, como é que fica quem falou?

Diante da insistência dos frequentadores e – por que não? – discípulos saiu-se com um título de um dos filmes de Woody Allen:

– Igual a tudo na vida. Não sei por que tanta surpresa?

Em termos de rumos tomados, direi apenas que o de dona Luzia (ou a nova Lu) apresentou um diferencial. Engatou um curso atrás do outro e, com a grana da partilha, resolveu passar um tempo fora do País.

A moçoila, como se vê, não era fraca, não.

A última notícia que se tem da figura é que ela participou de um desses reality de culinária na Austrália, pode isso? Foi desclassificada na primeira eliminatória do Masterchef de lá.

Jeremias, aquele, garante que foi uma injustiça.

– Preconceito, meus caros, xenofobia. Quem se deliciou com os quitutes da Lu sabe bem o que eu estou dizendo.

Sobre os burburinhos que os dois tiveram um romance, o malandro foi discreto:

– Prefiro não comentar.

Na outra margem do rio, deu o óbvio e o previsto. Uma coisa leva a outra, e a outra leva a uma. Jacira as funções de dona do pedaço na padaria e na vida do (inicialmente) apatetado Seu Mané.

Para surpresa de muitos, até que formaram um casal apaixonado.

No meio desse enrosco todo, sobrou para o negócio. A padaria já não era mais a mesma.

– É a crise que o país atravessa, justificava-se Seu Mané.

– Dona Luzia faz falta, arrematou Jeremias.

– Seu Mané agora só quer o deleite do novo amor, diziam os mais enciumados
(alguns cheios de ideinha em relação a Jacira).

Aliás dizem que foi sugestão da própria vender a padaria e propor um novo rumo para a vida de ambos.

Dito e feito.

Com o dinheiro arrecadado (ou parte dele), compraram um trailer adaptado, desses bem moderninhos, com comidinhas transadas e coisa e tal.

Agora, só participam de feiras e eventos – e aproveitam para curtir e conhecer esse Brasilzão de Meu Deus.

Quando não viajam, você pode encontrá-los na Vila Madalena, no meio da moçada que, faminta, sai das baladas locais.

Único senão: seu Mané não gosta quando o chamam de “tiozão” e odeia quando os mais abusados perguntam se Jacira é sua filha e provocam:

– Fala aí, sogrão.

Sabe como é, ‘portuga’ escaldado…