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Cena paulistana

Voltei, mas nem tanto…

Recupero um texto antigo — de 24 de janeiro de 2002,
publicado em Gazeta do Ipiranga — para dizer olá
e também para reverenciar o aniversário de São Paulo,
onde tudo pode acontecer em fração de segundos..

O texto chama-se:

CENA PAULISTANA: O SEMÁFORO

"Pois é o avesso do avesso do avesso o avesso…"
(Caetano Velloso, em "Sampa")

01. Aqui, no Ipiranga, existem vários semáforos, desses de empatar a vida de qualquer mortal. Um deles especialmente, o que fica no cruzamento da via Anchieta com rua Salvador Pires de Lima, não vai lá muito com a minha cara — o que, de resto, também não é um fato raro de acontecer. Diariamente sou obrigado a enfrentá-lo, no mínimo, duas vezes ao dia. E, via de regra, me dou mal. Quando não pego uma fila quilométrica pela frente, empaco ali preciosos minutos mesmo estando na boca para atravessá-lo.

02. Tanto faz estar vindo ou voltando para o trabalho, é inevitável. Lá estamos eu e meu valente Escort, a suportar os dissabores de um buzinaço (de fazer inveja aos argentinos), do fumacê dos escapamentos, do mau-humor dos motoristas (entre os quais me incluo) e outras tantas inconveniências próprias do trânsito de uma grande metrópole.

03. Olha, possa estar enganado, mas que eu me lembre nunca consegui passar por ali diretaço, sem que o dito cujo lançasse em minha direção uma implicante luz vermelha, tipo pare aí, desavisado, quem manda na área sou eu.

04. Recordo que foi imaginando uma redentora desforra que aproveitei um dos tantos feriadões de 25 de janeiro que já vivi. Não fui viajar, preferi ficar em São Paulo, só saboreando a hora da vingança. A tarde estava com aquele solzinho morno e preguiçoso. Entendi que era hora de por em prática meu plano. Embiquei meu possante em direção da Anchieta, sentido Ipiranga/ABC, e estrategicamente imaginei o plano. À uma distância adeqüada, controlei a velocidade do carro e, no momento, oportuno… zuuummmmm!… acelerei para surpreender o semáforo no verde. Por um momento, saboreei a vitória: hoje, essa trapitonga não me humilharia…

05. Pois é. Estava verde para mim só que um inconveniente e grande caminhão surgiu à minha frente e, como só e acontecer, atravessou a Anchieta mesmo no vermelho… Não se assuste, caro leitor: nada aconteceu comigo. Consegui frear o carro a tempo. Mas, obviamente, que avermelhou… E lá fiquei a esperar o sinal abrir…

06. Valeu o susto. Valeu ainda mais quando olhei para a direita e vi que não estava mais só na espera. Um desses carrões importados — que não sei identificar — me fazia companhia e, ao volante, uma motorista pela qual, convenhamos, valeria esperar uma eternidade…

07. Ela tamborilava o volante com os dedos finos, diria dedos de pianistas. Mostrava-se séria e compenetrada, distante, muito distante dos meus olhares e pensamentos. Sabe-se lá quem seria o dono de suas preocupações e desejos. Os cabelos soltos, o rosto pequeno de uma plácida beleza, o olhar compenetrado a furar o pára-brisa. Por certo, ela me lembrou alguém… Alguém que não esqueço e ainda espero, mesmo sabendo que essa espera pode durar uma eternidade…

08. Verde. O farol abriu. Lá fomos nós. Permaneci na pista central e segui em frente. Ela tomou o primeiro atalho à direita e sumiu. Curioso esse sentimento de perda (nem a conhecia) que todos nós carregamos, calados, vida afora…