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Viver de música

Escrever é sempre um ato solitário. Mesmo quando sabemos que há alguém, do outro lado da tela ou próximo de nós, disposto a ler o nosso recado… Escrever, de qualquer modo, sempre mexe com o Sr. Imponderável de Almeida que Nélson Rodrigues consagrou e, não raras vezes, revela situações outras, latentes a cada ser, sobre as quais nós, meros escrivanhadores, não temos o menor controle…

Pero Vaz Caminha que o diga!

Mas, nossa história é outra, e conto a seguir:

II.

Quando a moça bonita que sempre
chegava atrasada, pois vinha de uma
cidade do interior, entrava na sala de aula,
o galocha do Haroldo não tinha dúvidas…

Tudo aquilo existia e não era miragem
de um promissor empresário, no ramo de parafusos,
que resolveu fazer um MBA na PUC só porque
a vida andava um tédio…

Em segundos, ela se apropriava, sem dizer
palavra, de todas as cores, sons e atenções
da sala, e por um desses inexplicáveis dons
da natureza passava a ser a própria razão
de ser da aula, do curso, da vida…

Haroldo sempre foi um exagerado
para certos sentimentos…
Logo se viu afinzão da moça que mal conhecia,
mas sentava ao seu lado todas as aulas…

III.

— Investi tudo, meu querido ( por vezes,
Haroldo se imaginava carioca da gema,
só às vezes). Percebi que a moça
gostava de música, MPB. Quem não
gosta, não é? Então, falei é mamão com
açúcar, macuco no embornal. Sou eu
na fita. Êta paradinha boa. É minha praia…

Como sentavam próximos, não tanto
quanto ele queria, mas o suficiente
para que se estabelecesse uma
certa cumplicidade para ‘tocar’ aquelas
aulas chatíssimas, teve o que considerou
uma idéia brilhante…

— Desenhei caprichosamente, no meu
caderno com letras suficientemente grandes
para que ela pudesse ler… SERIA
UM EQUÍVOCO VIVER SEM MÚSICA…

IV.

Enquanto ditraidamente sublinhava
várias vezes a palavra MÚSICA, ainda com
os olhos no papel para disfarçar,
Haroldo ouviu o barulho do arrastar de uma
cadeira e o movimento rápido de quem
sai às pressas. Era ela…

Com um palavrão que não ouso repetir aqui
comemorou o golpe de mestre. De pronto se
auto-convenceu da perfeição da estratégia…

— Ela não resistiu… E quem resistiria…

A moça saíra da sala
visivelmente transtornada…

V.

No intervalo, fui ter com eles e,
sem saber do ocorrido, os encontro
apoiados na murada da escada,
em frente ao prédio…

Vejo que ela tem
olhos avermelhados de quem
havia chorado e ar de quem caiu
em si. Haroldo, reparo, é todo
expectativa. Pronto a recolher
os frutos de mais uma conquista…

Ela sequer repara que cheguei,
e comenta em voz alta para Haroldo
e quem quisesse ouvir…

— Foi revelador o que você escreveu…

— Ora, deixe de bobagem.
Não escrevi nada assim tão …

Achei o comentário meio cínico, mas
quis ouvir o resto da história.

–Verdade, Haroldo. Namorei um cara três anos,
nos separamos e só agora descobri a força
de um sentimento…

— Como assim – diz um Haroldo, algo transtornado..

— Ele era MÚSICO e viver sem ele
tem sido um grande equívoco. Foi revelador
o que você escreveu…

VI.

Depois desse dia, nunca mais soube deles.
Haroldo trancou matrícula por absoluto desinteresse
à Retórica da Comunicação, seja lá o que essa
disciplina quer dizer.

A moça fez o mesmo. Imagino que preferiu
desfazer o equívoco e viver
de música. Ou melhor, para o músico…