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O homem transtornado

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O homem, visivelmente transtornado, anda entre os carros quando o semáforo fecha.

Ele me fez lembrar o tio Orlando.

O tio, irmão do meu pai, também tinha lá suas esquisitices.

Caminhava pelas ruas, noite adentro (todos se recolhiam antes das 22 horas que, à época (anos 50), eram conhecidas como 10 da noite), falando sozinho, em voz alta, blasfemando contra tudo e contra todos.

Lembro minha mãe tentando esconder o vexame familiar de nós – eu e minhas irmãs – crianças. Mas, com olhar solidário ao drama que o tio vivia.

– Precisamos fazer algo por ele, Aldo.

Pelos vãos das frestas das janelas, acompanhávamos o desvario do tio sem coragem de fazer qualquer comentário. Víamos as luzes das casas vizinhas se acenderem – obviamente para testemunhar o que acontecia, quem era o ‘maluco’ – e, mesmo crianças, já antevíamos o que nos esperava na manhã do dia seguinte, na escola, na ‘pelada’ ou mesmo nas brincadeiras ruas.

Eu tinha uma justificativa, na ponta da língua:

– O tio está assim porque separou da mulher.

II.

O homem entre os carros também inspira compaixão.

Fala, gesticula e, aparentemente, xinga e ameaça a todos que passam ao redor.

Os vidros dos carros se fecham, o olhar assustado de quem passa, a indiferença de muitos, a rejeição são a tônica do cenário que vejo hoje – e, no qual, me incluo.

Amplio a reflexão.

Tudo nos assusta. Traz pânico.

Faz com que nos imaginemos refém do descontrole da sociedade que, mal ou bem, ajudamos a construir. Seja em São Paulo (dos assaltos), seja no Rio (das balas perdidas), em Paris (com policiamento ostensivo contra eventuais ataques terroristas), em uma escola nos Estados Unidos (e seus misteriosos atiradores)…

III.

Naturalmente, responsabilizamos o Estado, os governantes, os políticos, as novelas da Globo, a balbúrdia das redes digitais… Alguém ou todos são culpados pelo drama que vivemos em qualquer parte do mundo

Não nos atentamos, porém, que a coisa toda é bem mais ampla. Não atinge unicamente o país, o estado, a cidade. Mas, parece ser um estigma planetário que hoje enfrentamos.

Retrocedemos à era das trevas?

Há, penso eu, outros fatores tão determinantes quanto os acima relacionados para o caos nosso de cada dia. Fatores esses que, mal ou bem, nos remetem à história do tio Orlando.

IV.

Não sei lhes explicar o ‘como’ e o ‘porquê’, mas sentimentos/virtudes importantes, que formatam nossa humanidade, simplesmente desapareceram do nosso radar de como viver em sociedade.

Respeito ao próximo e à vida, tolerância com o diferente e as opiniões contrárias à nossa, fraternidade, amizade, comprometimento com o bem comum, solidariedade, compaixão, misericórdia, perdão…

Por onde andam?

Quanta falta hoje nos fazem?

V.

Não tenho pretensão a mago ou mesmo a palestrante de autoajuda. Também não estou dando, nem vendendo, como diz o velho e bom samba de Almir Guineto (“Conselho”).

Só queria mesmo fazer esse desabafo que, de certa forma, encerra o pensamento de Mahatma Ghandi:

“Temos que nos tornar a mudança que queremos ver”.

 

Nota do Blogueiro:

Uma noite qualquer, o tio Orlando saiu andando mundo afora – e, desde então, nunca mais tivemos notícia dele.

*(foto: jô rabelo)

 

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