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Tião das Mulas

Foi como se tivesse feito um curso intensivo sobre a vida. Aconteceu num feriado de Corpus Christi, como o de amanhã, Só que na virada do século, em 2000. Fui pautado para realizar uma reportagem sobre a Trilha do Ouro no Parque da Serra da Bocaina, na divisa de São Paulo e o Rio de Janeiro.

Eu e o repórter-fotográfico Robson Fernandjes fomos designados para acompanhar um grupo de eco-turistas que fariam o trajeto a pé pelo mais antigo caminho calçado por pedras em plagas brasileiras. Era por essa rota em meio à mata que caravanas de mulas, tocadas por tropeiros, levavam o outro de Minas para as embarcações portuguesas (ou inglesas) em Paraty ou Angra dos Reis. Hoje, a trilha é uma atração turística e as mulas são o único transporte possível, dada as peculiaridades da estrada. Só que os animais não carregam mais metais e pedras preciosas. Levam, sim, as mochilas coloridas das diversas tribos urbanas que se travestem em Indiana Jones.

Foram quatro dias de caminhadas pelo lugar que é tombado pelo Patrimônio Histórico. Dormimos duas noites em casas da caboclada. Em conversas ao redor da fogueira fiquei sabendo do dilema que vive este grotão do Brasil.

Os ‘voadores’ — ou seja o pessoal que voa de asa delta — compram terrenos ali para veranear e deixam o mato crescer — salve o verde. Os bocaneiros, matutos que nunca saíram do lugar e moram em pequenos ranchos, fazem uma agricultura de sobrevivência. Os moços da cidade logo os denunciam para o IBAMA por desmatamento. Os fiscais vão lá e os multam em 2, 3, 5 mil reais. Dinheiro que, diga-se, não ganharam e nunca vão ganhar na vida.

— Minha vida está aqui antes da terra virar parque.

Foi assim que, naquela ocasião, Sebastião Henrique de Lima, o nome de batismo de Tião das Mulas, começou a relatar a sua história e um pouco da história do Parque Nacional da Bocaina, onde mora desde que nasceu.

Tião era agricultor e tinha então 32 anos. Tirava um dinheirinho extra no fim do mês desde que passou a acomodar grupo de turistas em sua casa de paredes varadas à beira do rio Mambucaba. Outro reforço vinha do candear de mulas carregadas de mochilas até o fim da trilha.

Ele me deu um depoimento tocante que transformei em reportagem e hoje transcrevo aqui.

Leiam!

II.

OS ANFITRIÕES NA SERRA DA BOCAINA

Não tenho estudo, não, moço.

Como vou viver fora daqui?

Foi meu avô, que ainda hoje é vivo e tem 77 anos, quem ajudou a erguer a Fazenda Central. Meus pais nasceram aqui, como eu e meus irmãos. Como meus filhos.

Não tem como sair daqui, não. Para onde vou? São José (do Barreiro)? São Paulo?

Não temos nada a fazer por lá. Sempre fomos do roçado, da criação. Não entendo os homens do Ibama – pensam que vamos destruir tudo: sujar a água dos rios, derrubar as árvores, acabar com o palmito. Justamente nós que sempre vivemos aqui e só sabemos viver do que essa terra nos dá. Não tem cabimento.

Eles ficam bravos, falam que não pode isso, não pode aquilo. E cascam multas na gente. Não pode nem arar a terra que eles chegam mandando desfazer o que a gente fez.

Só porque levantei minha casinha lá pelos lados do Vale dos Pinos, já levei 11 multas. Quando fiz a cozinha deram uma de R$ 2 mil. Depois aumentei os cômodos, veio outra de R$ 5 mil. Imagina se tenho como pagar essas danadas?
Nem penso nisso.

O moço advogado disse que tenho direito de ficar aqui. Minha família está aqui antes da terra virar parque. Então, podemos ficar e pronto. Para ser sincero, somos os primeiros a querer preservar a mata. Só plantamos o que é para a gente comer – e para alguma troca. A gente também faz um queijo e cuida do gado. É pouco, mas dá para ir levando. Nada que possa prejudicar o lugar onde a gente vive e onde os filhos da gente vão viver. Ainda mais agora que estamos dando pouso e alimento para os turistas, a gente quer manter tudo nos conformes. É um dinheirinho a mais que entra.

Até minha mulher Estelina gostou da novidade. Ela nem se importa de cozinhar para esse punhado de gente. A casa fica movimentada. Acaba com o nosso isolamento – e, de quebra, dá para pensar melhor na vida. O dinheiro? Não é muito, mas ajuda. Aos poucos, vamos levantando a casa, melhorando o jeito de viver. Temos que pensar num jeito dos filhos terem uma vida melhor do que essa que vivemos.

** A íntegra da reportagem Serra da Bocaina – Nas Trilhas de Um Velho Paraíso foi publicada em setembro de 2000 no Jornal da Tarde e está disponibilizada, neste site, no ícone REPORTAGENS.